Já não esvoaçam pássaros negros. Não
há olhos de veios sangrentos a inundar-me a vista. Não há monstros, de
silenciosa persuasão, a empurrar-me os passos por carreiros sempre errantes.
Não há fantasmas a alimentar-me de água salgada a raiva. A dança da loucura,
esquizofrénica e demente, deixou de me embalar.
Não há mais vocábulos gritantes,
afoitos e desenraizados, a enrolarem-se-me na língua, cuspindo ofensas em
chamas. Não há punhos cerrados sobre a carne ao comando do pensamento desfeito.
Nem ódio com cheiro a memória a soltar-se-me dos poros, a abandonar a pele e a envolver,
de rompante, o ar.
Há o cansaço que pesa ainda nos
ossos a história. Se o passado tentou atropelar o presente foi porque o
consenti. Mas, sem pássaros negros, olhos de veios sangrentos, monstros,
fantasmas e loucura, a consciência retoma, sem pressas, a soberania. E a calma
ganha terreno à dormência. As pedras voltam ao trilho para deixar antever a
estrada. E eu caminho.
Há ainda aquela dor miudinha que
acompanha a saudade. Que sufoca devagarinho para defender um propósito,
fazendo-se notar. Mas que já não é estridente, aguçada, cortante. Já não
esventra, não perfura, não desassossega. Não mata. Só mói.
Guardo ainda as tuas fotografias.
Não são estáticas. Tiveram sempre um movimento que é infinito, perpétuo. Têm
cheiro e temperatura e tonalidade e luz e sombra, daí permanecerem vivas. “Às
vezes as fotografias que tenho de ti duram três passos. Às vezes duram um
acorde. Às vezes duram a suspensão do ar entre uma inspiração e uma expiração.
Às vezes duram o silêncio todo. Às vezes cabes nelas inteiro. Às vezes não. Em
muitas estás em pedaços, esquissos, frestas, que só eu sei a que parte
pertencem.” Lembras-te?
A escuridão vai desvanecendo, num
arco-íris de tons cinzentos que aclaram. Depois do pousio, os dias retomarão a
cor. Hão-de florescer ao seu próprio ritmo. Como nós.
Aquieta-me saber que nos deixámos
livres. Que nos libertámos para redescobrir quem somos. E que a despedida pôde
ser medida em beijos. As últimas linhas que escrevi sobre ti contrariaram
tendências, não sabendo a lágrimas ou a desgosto. Foi com um “amo-te”, seguido
do teu nome, que pus fim a tantas páginas doridas. Dir-te-ei que te amo muitas
vezes em silêncio. E, sem cobranças, talvez consiga voltar a erguer-me e a
dizer que também gosto de mim.