No quintal da Tóia havia um tanque
de pedra à sombra de uma figueira. Havia uma outra árvore, menos robusta, encostada
à qual construímos, um dia, uma cabana. Lá dentro guardámos um tapete e uma
cafeteira velha e, nessa tarde, foi tudo o que eu, o meu irmão e o Júlio precisámos
para sentir que tínhamos uma vida.
A casa da Tóia não era feita de
tijolo nem assentava a direito no chão. Vista de fora destoava de todas as
outras. Parecia inclinada. Às vezes caíam bocados da parede da rua. O chão era
vermelho. Vivo e frio. Na casa de entrada havia um sofá, rijo e comprido, uma
poltrona e uma mesa quadrada de madeira. Do lado direito dois degraus altos
davam para o quarto. Seguia-se a cozinha e mais duas casas sem nome, e sem porta, até ao
quintal.
A casa da Tóia era diferente de
todas as casas que eu conhecia. Não tinha banheira nem frigorífico. Não tinha
electrodomésticos. Não tinha janelas por isso também não tinha luz. Os banhos
eram dados num alguidar azul, com água aquecida no bico do fogão. O açúcar, a
manteiga e o leite eram guardados no parapeito da chaminé. Havia candeeiros a
petróleo e um armário, de portas verdes, com copos pequeninos.
A Tóia era diferente de todas as
pessoas que eu conhecia. Tinha muitos anos. Muitos anos e muitas rugas. Vestia-se
sempre de preto. Saia, meias-calças, blusa, casaco e lenço na cabeça. Verão ou
Inverno. Saia, meias-calças, blusa, casaco e lenço na cabeça. Nunca lhe vi a
forma do cabelo nem a cor dos braços.
A Tóia era a pessoa mais velha
que eu conhecia e por isso era especial. Trazia sempre doces dentro das algibeiras.
Rebuçados embrulhados num plástico vermelho às bolinhas ou tabletes de
chocolate. Era baixinha e movia-se de costas curvadas, mas nunca me pareceu que
lhe custasse subir a ladeira do relógio. Nunca andou à escola nem aprendeu a
escrever o nome. Chamava-se Antónia Júlia. Mas para nós foi sempre a Tóia.
A Tóia ofereceu-me as minhas primeiras
canetas de bico-de-feltro – um pacote de seis da Mollin - e ensinou-me a fazer
uma omelete. Aos fins-de-semana dava-me sempre cinquenta escudos. E não
hesitava em dar mais vinte a cada um dos vizinhos que estivesse a brincar
comigo. Aos dias de semana, quando eu a visitava depois da escola, comprava-me
uma empada ou um salame.
A primeira vez que me lembro de
cantar foi na sua casa. “A Minha Casinha”. A porta estava aberta e o sol batia
nos ladrilhos. Lembro-me de ver o marido da Tóia sentado no sofá mas é aí que
temo que a memória me atraiçoe. Talvez essa parte seja fruto do
próprio imaginário porque, tanto quanto me contaram, o marido da Tóia morreu na
altura em que eu nasci. Sei que se chamava João e que não era boa pessoa.
A Tóia dava-me sempre a mão
quando andávamos na rua. Levava-me do lado passeio. No dia em que percebi que
ela era a pessoa mais velha que eu conhecia mudámos de posição. Ela dava-me a
mão mas era eu que ia do lado da estrada. Por uma questão de segurança,
lembro-me de pensar.
Quando mudámos de casa e deixámos
de a ir ver todos os dias a Tóia carregou-se ainda mais de preto. Mais do que
na roupa passou a exibi-lo na alma. A Tóia era minha tia-avó e nunca teve
filhos. Era a pessoa mais velha que eu conhecia e por isso eu tratava-a com o
respeito de um monumento. Pouco depois morreu e os meus pais não me deixaram ir
ao funeral. Lembrar-me-ei sempre dela, de olhar meigo, sorriso doce e chocolates
nas algibeiras. Saia, meias-calças, blusa, casaco e lenço na cabeça.
Hoje fui ao centro de saúde e vi
muitas Tóias. Quis abraçá-las a todas. Quis levá-las a todas pela mão. Elas do
lado do passeio. Eu do lado da estrada. Por uma questão de segurança.
Porque todas as Tóias deste mundo
têm o direito de ser amadas e protegidas. Como a minha foi.