21 agosto 2014

Matilde,

Hoje sinto a tua falta tanto quanto em todos os outros dias. Mas tu sentes hoje o dia diferente. Ainda que em todos os outros, nesta volta imensa em que a Terra contorna o Sol, a saudade tenha o tamanho do peito inteiro aberto, hoje ela expande-se, contorce-se na ânsia maior de abrir caminho e conquistar espaço, empurrando os ossos, apertando o que sobra, sufocando a alma, desassossegando os fantasmas que habitam, há muito, o coração.
 
Todos os dias são iguais em minutos e dimensão nesta tua ausência, sempre tão mal quebrada. Mas por hoje o dia te ser diferente, é-o também para todos nós. Porque cada dia teu é também um dia nosso. Ou deveria sê-lo, no mundo de harmonia e equilíbrio que sonhámos para ti.
 
Hoje dobramo-nos sob um silêncio inquietante, de turbulência contida mas em constante estado de ebulição. Esperámos-te nas horas caladas, quietas, infinitas. Nunca chegaste. E se sabemos porquê esperamos que nunca o venhas a entender. Porque entendê-lo significaria perder pedaços. E os pedaços que se perdem deixam crateras que, expostas às impurezas, são difíceis de sarar.
 
Um dia explicar-te-emos o amor. Explicar-te-emos o amor como ele é e não como te contam as fotografias. Um dia plantamos uma árvore. E damos a cada um dos ramos um nome: Matilde, Pedro, Pai, Avó Inô, Tia Lisa, Tia Mila, Tio Nuno, Zé Diogo, Tio Tói, Tia Gina... Juntamos ao nome desses ramos todos os outros que hoje se juntaram a ti. Havemos de regá-la e vê-la crescer, forte e bonita. Porque os ramos protegem-se uns aos outros, abrigam-se, defendem-se, criam estrutura, sobrevivem unidos. Como na vida, os ramos precisam uns dos outros, sem egoísmos, sem confrontos, sem tumultos, sem excepção.
 
Uma parte de nós faltou-nos hoje. Fomos esquissos, esboços, seres humanos inacabados. Uma parte de ti faltou-te também, mesmo que hoje ainda não o saibas. Porque todos nós somos, indiscutivelmente, pedaços uns dos outros. Somos sangue, somos carne, somos osso, memória, afecto. Amanhã esperamos novamente por ti. Trata de não te demorares.
Tia Lisa.
Beja, 20 de Agosto de 2014