Ninguém morre de amor. Hoje já ninguém morre de amor.
Não me lembro quando dei com esse texto pela primeira vez. Não me recordo qual dos meus amantes, infortunados, me o fez chegar às mãos. Mas sei que o devorei, uma vez e outra ao passar dos anos, com uma fúria esfomeada. Sei que cada um dos seus pressupostos se assume ainda como objecto da minha reflexão e motivo de busca da minha própria verdade, tantas vezes dúbia e mascarada.
Talvez não morra efectivamente de amor. Talvez não sucumba, no meu físico, à fatalidade que se tornou amar. Talvez este esqueleto, que em dias mal reconheço, continue a caminhar. E talvez o faça, apenas e só, para evitar a fossilização dos membros entre os passos quase quietos.
Talvez o amor não me mate. Talvez me vá apenas conduzindo, em rotas demoradas, ao ponto preciso que delimita a margem do abismo. E talvez a ele se suceda um estado qualquer de demência e insanidade.
Vejo-me vaguear pelo tempo como se ele demorasse mais a mover-se na tua ausência. Como se os minutos parecessem horas e as horas tivessem a periodicidade cíclica de estações de um ano inteiro. Como se o mundo se fechasse ao universo, gélido e estático, no momento em que as vontades ou o fado te afastam de mim. E depois, quando o relógio recupera a corda e me trazes o corpo para perto numa resposta tardia aos anseios, retenho no medo tudo o que tenho dentro para que não me roubes novamente o equilíbrio ao partir.
Tenho pedaços soltos do coração entranhados no peito cada vez desmembrado. Tenho cada um dos teus suspiros a pairar na vivacidade ilusória e desmedida das veias. E saudade. E angústias. A revolverem-se por baixo dos poros.
Não sei, afinal, se não se morre de amor.
Porque não conheço já outra forma de estar que não esta. Esta em que me protagonizas o pensar dos dias e encenas as tormentas que as insónias me trazem à madrugada. Esta que se descompensa em fracções de segundo. Que pode rasar o doentio e o patológico.
Talvez pudesse hoje vigiar-te o sono uma noite inteira. Talvez pudesse deixar que fosses tu a proteger-me a alma. Mas hoje, quando os receios consomem à socapa tudo o que sou, refugio-me no silêncio e cedo o espaço à distância, agora controlada, a que me fui habituando.
Hoje, quando o tempo parece correr desenfreado, deixo que a realidade me arranque os membros dos sonhos e os aproxime mais da superfície da terra. E aí, sim, durmo descansada.