08 março 2021

coisas de moços!


Comecei a cumprimentar a Dona Joaquina por lhe achar graça ao ar. E ela começou a retribuir. A Dona Joaquina tem para lá de 80 anos e é costume vê-la com vagar na esplanada da praça, sozinha e sorridente. Gosto de gente solitária e confortável com a própria solidão.

Amiúde pergunta se pode ganhar ar da volta e sentar-se comigo. Conta-me histórias da miséria e do custoso que foi criar as filhas. Coube-lhe a ela. Como cabia sempre, naquele tempo, às mulheres.

Labutou muito. Em casa e fora dela. Penou outro tanto. Nem a fruta que caía, a apodrecer, das árvores a patroa lhe permitia acariar. Do que rendia o trabalho dava parte à Casa do Povo. Mas parte de pouco será sempre muito pouco para dar alguma coisa. Hoje pede aos moços novos que passam na rua para lhe carregarem os sacos e lá abala, calçada abaixo, rente ao passeio, a dar uso à companhia.

A minha avó Joana nunca quis que a minha mãe lavasse no tanque ou desse baixinhos de cal nas paredes. Como ela o havia feito. Como faziam as moças da aldeia. A vida era para lhe correr de melhor feição. O meu avô Zé impôs à minha tia que se livrasse de, de homem algum, apanhar as primeiras. É que as primeiras jamais seriam órfãs. Lá em casa não se falava de feminismo. Dava-se-lhe, sem saber, o nome de amor.

O apartamento que comprei trazia na fechadura das portas restos do papel onde vinham embrulhadas as chaves. Lembrei-me de todas as casas-de-banho públicas em que entrei. Como homem, o meu companheiro tardou em perceber a analogia. Como mulher, cedo aprendi a contornar os avanços dos espectadores indesejados.

Aos seis anos descobri que, durante todo o Ensino Primário, não havia de utilizar uma única vez as casas-de-banho da escola. As portas não trancavam e eu não gostava de ter olhos alheios postos em mim. Coisas de moços!

Nos intervalos, as meninas escapavam dos meninos que lhes queriam levantar as saias ou dar beijinhos na boca. Eles riam. Elas fugiam e gritavam. Coisas de moços! Serenava-me não atrair a atenção do sexo oposto. Mas aterrorizava-me a ideia de que pudesse, dia algum, vir a ser remetida para o lugar de presa. Sem margem para posições neutras, antes predadora.

Ouvi o primeiro piropo quando ainda conseguia contar, pelos dedos das mãos, as voltas da Terra sobre o Sol. Boquinha doce. Larguei a bicicleta e fugi nauseada pelo quintal da minha avó adentro para não voltar a ver a travessa naquela tarde de Verão. Coisas de moços!

Trazia, na testa, o reflexo da puberdade e, no bolso, um walkman de pilhas gastas naquele sábado em que saí do dentista. Um par de mãos a agarrar-me, na rua, o par de mamas que mal tinha. E, por trás, o mesmo riso. Aquele riso dos meninos que perseguem as meninas nos intervalos. A mesma satisfação. Perversa. Sádica. Cruel. O jogo do predador e da presa. Coisas de moços!

O meu grito, a mesma agonia. O desconforto. O incómodo. E o nojo. A raiva. A revolta. E a vergonha. Depois, o desalento. Por fim, a quase habituação à normalização social do assédio e da violência. Coisas de moços?

Nas vésperas de mais um Dia Internacional da Mulher recebi a notificação de que a queixa que apresentei contra um médico do Serviço de Urgências, que me agarrou violentamente por um braço e me arrastou, havia sido arquivada.

De acordo com o Ministério Público, violência que é violência tem de deixar sequelas. Físicas. E visíveis, em exame pericial realizado volvidas mais de 48 horas. Como se, efectivamente, a alma não sentisse o que os olhos são, mais tarde, incapazes de ver.

A narrativa remete-me irremediavelmente para o tão enraizado Estava mesmo a pedi-las!, para o tão afamado Pôs-se a jeito!, para o tão vulgar Ela fez alguma! E lá ecoa o desculpabilizante Quem lhe manda começar a gritar com o homem?! Homem algum deve ser publicamente enxovalhado.

Histérica! Desequilibrada! Frustrada! Ela. Feminino.

Questiono-me se uma médica teria tido, para comigo, a mesma postura. Deixo a dúvida pairar. Mas tenho por certo um desfecho diferente caso a minha voz ressoasse de um corpo de homem. Às palavras não seria associado histerismo mas agressividade. Ao desequilíbrio chamariam insatisfação. À frustração ameaça.

A segurança seria accionada. E eu sairia sem que braço algum me agarrasse violentamente e arrastasse. Mas, neste jogo de poder, a estridência da minha voz não foi intimidante o suficiente para requerer reforços ou exigir o cumprimento do protocolo. Com esta posso eu bem!

Até quando serão coisas de moços?

18 dezembro 2020

ser

Houve um dia em que estacionei em segunda fila para ir, num instante, ao quiosque comprar tabaco. Deixei o computador e a mala em cima do banco da frente mas tranquei as portas. Cruzei-me com um rapaz de “ar estranho”, que se encostou à traseira de um carro com o olhar fixo no meu.

Olhei para trás quatro vezes, desconfiada. Não uma. Não duas. Não três. Quatro vezes. Sabia que as portas estavam trancadas mas tinha o computador e a mala no banco da frente. Apressei-me a voltar. Abri a porta. Sentei-me. Olhei para o lado. E vi o rapaz de “ar estranho” a apagar o cigarro e a entrar calmamente no carro a que estava encostado – aquele a que eu tinha cortado a saída.

Senti vergonha de mim própria. Amaldiçoei esta desconfiança interna, injustificada, sistémica, estruturante, que advém do que não me é familiar. Abri o vidro e pedi desculpas. Ele sorriu e acenou. O rapaz de “ar estranho” estava apenas a deixar-me tratar dos meus afazeres, sem se preocupar que isso atrasasse os dele.

Questionei-me sobre o que terei achado estranho no seu ar e a resposta atingiu-me como um murro. Não me pareceu português!

Há tempos fiz um estudo de caracterização da população migrante de determinado concelho. Entrevistei dezenas de pessoas que deixaram os seus países em busca de uma vida melhor. Como também eu o fiz há quase uma década. No dia da primeira sessão sabia ter 23 homens de origem asiática à minha espera, em contentores isolados numa zona rural, longe da vista e das gentes. A pessoa que me deveria acompanhar falhou e eu vi-me a fazer a viagem sozinha, angustiada, hesitante, amedrontada.

Parei no caminho para fumar. Forcei-me a acalmar-me. Quando lá cheguei tremia-me a voz. Estendi a mão àquele que se apresentou como representante da comunidade e acendi outro cigarro. Os restantes só me cumprimentaram depois deste lhes dizer para o fazerem. A explicação era simples: muitos eram muçulmanos e, culturalmente, não tinham por hábito tocar em mulheres.

Era uma manhã chuvosa de Janeiro. Hora de pequeno-almoço. Perguntaram-me se queria um chá. Aceitei. Abri uma caixa de bolachas que levara comigo e partilhei-as com eles. Limparam um dos contentores para que eu pudesse sentar-me a fazer as entrevistas. Entravam dois a dois e os restantes esperavam à porta, pacientemente sem questionar. Só quando lhes disse que não precisavam de estar ao frio e à chuva é que se sentiram à vontade para entrar. Ofereceram-me uma tablete de chocolate. Contaram-me as suas histórias.

Passei dois dias com eles nos contentores. Eu e 23 homens, cuja língua eu não falava e a cultura não conhecia. Quando nos despedimos deram-me um abraço. Carregaram-me os sacos. Acompanharam-me ao carro. Cantaram. Agradeceram tê-los ouvido.

Quando voltei a casa tinha à minha espera um par de braços. Tinha o jantar ao lume e o aquecedor ligado. Dormi na segurança que conferem os laços familiares e os afectos. E isso foi o suficiente para reconhecer a minha tremenda condição de privilegiada.

Recebo mensagens todas as semanas. Perguntam por mim e pela minha família. Quando a minha mãe adoeceu telefonavam todos os dias a saber dela. Ateia, digo-lhe, às vezes, que recuperou tão depressa porque todos os migrantes que conheço rezaram por ela aos seus deuses.

O Yasir conseguiu comprar casa numa aldeia. Pediu-me ajuda para fazer os contratos da luz e da água. O Zuhaib casou e mandou-me uma fotografia da festa. O Kumar está agora na Alemanha porque até Fevereiro não há trabalho em Portugal. Deixou a agricultura e agora faz pizzas. Há-de voltar em Março. O Muhammad já conseguiu o visto de residente e mandou-me uma fotografia no momento em que o foi levantar. Diz que foi o dia mais feliz da sua vida. O Doctor já tem cá a família. Está à espera de conseguir fazer um curso de português para pedir reconhecimento de competências e voltar a exercer a profissão de dentista. O Kul tem estado doente. Eu e o meu companheiro fomos com ele ao Centro de Saúde e depois ao hospital. Já se sente melhor mas ainda não pode voltar ao trabalho. Mandou-me uma fotografia da família. Estamos convidados para o casamento da filha mais velha, em Março, no Nepal.

Recebi postais de Happy Jummah, Happy Diwali e até Feliz Natal. Hoje é Dia Internacional das Migrações. Mandei a todos uma mensagem. Mas uma mensagem não maximiza o pouco que posso fazer por eles. Uma mensagem e algum apoio não compensam a forma desumana como teimamos em tratar quem só quer uma vida melhor.

O escritor C. Douglas Lummis escreveu que as pessoas “não são iguais porque a lei natural assim decreta. Elas são iguais no sentido em que enfrentam a mesma tarefa existencial: devem viver uma vida”. Reconhecer-me, diariamente, como sendo intrinsecamente racista, xenófoba e até sexista é o primeiro passo para combater a discriminação. Tomar consciência do meu preconceito é fundamental para conseguir eliminá-lo.

pessoas

A casa onde vivia com a minha mãe, o meu pai e o meu irmão tinha muitos livros nas prateleiras. Eu gostava de ler e escrever mas também de andar de bicicleta e de roubar maçanitas dos galhos das árvores que caíam para fora dos muros da horta do ‘Botas de Cigano’. Na casa da minha avó e do meu avô, do outro lado da estrada, não havia livros. Mas havia outras coisas. Uma marquise com bilhas de azeite. Melões e melancias que duravam o ano quase todo. Queijinhos e marmelada. Galinhas e ilhéus. Às vezes um casal de cabras. Borregos. Coelhos. Ao serão descascávamos favas e ervilhas. No Verão dormíamos no fresco do chão do corredor, com o postigo aberto.

No meu bairro havia muitas crianças. As que tinham pai e mãe. As que só tinham avó. As que tinham muitos irmãos. As que não tinham nenhum. As que podiam ser o que quisessem. As que não podiam ser mais do que lhes era permitido. A minha avó dava sandes de marmelada e canecas de café com leite a todas. A minha mãe dava-lhes boleia para a escola até ao limite de capacidade do nosso Subaru azul escuro, sob o compromisso de todas termos de o empurrar nas manhãs frias de Inverno.

A avó da Célia dava-nos muitas vezes o lanche. A da Alexandra deixava-nos ir para o tanque que tinha no quintal. Aos sábados de manhã, o Zé Maria e a Mariana ou a Leonor e o Eduardo levavam a vizinhança às compras ao Prisunic de Beja. O pai da Ana Lúcia e da Lígia trouxe bicicletas sob encomenda para (quase) toda a gente. Quem não tinha, esperava a sua vez de andar.

A minha tia avó que vinha de Lisboa trazia-nos os brinquedos mais modernos. A minha tia avó que vivia na vila trazia-nos as algibeiras cheias de rebuçados e chocolates. A minha tia avó que vivia em Lisboa ofereceu-me um computador portátil quando terminei a licenciatura. A minha tia avó que vivia na vila ofereceu-me as minhas primeiras seis canetas de bico de feltro.

Ao longo do meu percurso profissional e académico entrevistei ministras e secretários de Estado. Fiz teatro com a D. Alice que toda a vida guardou gado e com a D. Otília que foi professora. Dancei com o Sr. António que é pastor e com o Sr. Zé que anda à cortiça. Lanchei à da D. Lurdes. Apanhei boleia no tractor do Sr. Joaquim. Fui ao medronho com a D. Lucília. Escrevi o prefácio do livro da D. Rita. Bebi aguardente com todos eles. Dei concertos num bar nas Olhas e nas FNAC do Algarve. Subi ao palco tanto em S. Barnabé, no meio da serra, como na RTP. Almocei no João das Cabeças e jantei no Casino de Vilamoura. Gosto das migas d’A Pipa e das sopas de cação d’O Pinguinhas, em Beja. Adoro os gaspachos e as linguiças assadas da Associação Malta Dura, nos Moinhos de Vento, Almodôvar.

Talvez seja por ter aprendido tanto, com tanta gente diferente, que a crise de pensamento me custe tanto a aceitar. Parto sempre do princípio de que há quem não tenha ferramentas para ver mais do que o que a vista alcança não por opção mas por falta de oportunidade. Com base nessa premissa, e normalmente sem que tal mo seja pedido, procuro fornecer informação, indicadores, outras perspectivas que possam ajudar a abrir horizontes. A educação é a base da cidadania. Ainda que a tarefa possa ter por trás alguma arrogância e prepotência o seu motor é a tentativa – muitas vezes, vã – de tentar capacitar, no sentido de evitar que a falta de conhecimento seja limitadora da liberdade.

Há dias ousei comentar uma publicação em defesa da greve de fome que foi amplamente partilhada. Contestei o protesto, usando um conjunto de argumentos, procurando mostrar aos seus inúmeros apoiantes de outros sectores da restauração – não de luxo, não de Lisboa – a forma como não estavam a ser representados. Apenas porque me custa ver quem está desesperado a depositar esperanças num movimento que é elitista, fraudulento e ultrajante para quem, efectivamente, passa fome e se encontra em severas dificuldades.

Apesar de todas as críticas que recebi – a grande maioria em forma de ofensa –, o retorno aqueceu-me a alma. É que, para lá dos 600 sinais de apoio ao comentário, recebi pedidos de amizade e mensagens privadas de pessoas que não conheço. E todas elas tinham algo em comum – uma tremenda humanidade. Todas terminaram com um agradecimento, com um ‘bem-haja’. Todas tiveram a forma de abraço. O que saberá melhor que um abraço inesperado?

E é esta espontaneidade de afecto – tão bonita e genuína porque sem expectativas – que me restabelece o equilíbrio e reforça a esperança de um mundo melhor. É por existir este contraste que tantas vezes digo que odeio pessoas. Nada sabe melhor que levar estes doces murros no estômago.

À Nana, à Teresa, ao João, à Patrícia e a todas as outras pessoas que me fizeram chegar mensagens, O MEU OBRIGADA.

10 agosto 2020

INFERNO

Viver no Interior do país implica que tenhamos, demasiadas vezes, de nos contentar com o medíocre. Incapacitados pela impossibilidade de escolha, somos constantemente recordados do patamar de inferioridade em que nos encontramos, que conduz a uma inevitável aceitação. Há o “nós” e o “eles”. Perante a ausência de “outros” que nos sirvam de alternativa, consentimos a cegueira e rendemo-nos. Somos escravos da nossa própria condição. Reféns e carrascos de nós mesmos.

A teoria da evolução das espécies de Darwin dita a sobrevivência do mais forte. Assim é também no jogo de mercados. A competição induz a melhoria. E a possibilidade de escolha de quem consome liberta. A liberdade instrui e capacita. E ao aumentar o poder de uns, reduzindo o monopólio de outros, minimiza o fosso que nos separa “deles”. Mas não aqui. Não neste Interior, onde a baixa densidade populacional nos remete para a categoria de inexistentes.

Exigir direitos implica, aqui, medir consequências. Como se os direitos não o fossem. Mendigamos o medíocre na certeza de sem ele nada termos. Comemos a côdea dura e seca porque, há muito, perdemos o gosto ao pão. À fraqueza do estômago junta-se a revolta da alma. E o silêncio, que só grita por dentro. Somos “nós” a depender “deles”. Somos “nós” a precisar “deles”.

No Interior do país, neste Alentejo de solidão e Sol, a mãe é, à quarta, alvo de uma intervenção cirúrgica complexa do foro oncológico. À quinta de manhã vomita no piso, como consequência da descompensação de uma doença crónica de que é portadora. É-lhe, ainda assim, dada alta, quando a temperatura exterior se aproxima dos 40 graus.

É entregue à filha numa cadeira-de-rodas no interior do átrio do hospital, com a informação de que se encontra muito mal disposta. Colapsa no momento em que se levanta e permanece a vomitar no chão. A cadeira-de-rodas havia voltado para a origem no instante em que a deixara. Não havia outra onde a colocar. Pede à recepção que telefonem para o piso. Dizem-lhe que, apesar de ainda se encontrar no interior do edifício, com alta dada o protocolo a encaminha para as Urgências. Perante a recusa, uma enfermeira vem buscá-la e leva-a novamente para o piso. Não lhe é feito qualquer tratamento nem pedido o parecer da Medicina Interna. A cirurgia correu bem e o lugar dela é em casa. Naquele quintal não há mais espaço e os outros têm donos próprios. É de mau tom incomodar, que o excesso de trabalho já abunda.

Neste mesmo Interior do país, à sexta de manhã a mãe tem novamente alta, antes sequer do clínico a ter visto. O documento estava passado desde o dia anterior e é preciso racionar recursos. A filha pede para falar com o clínico, que se recusa a atendê-la por telefone. Vai presencialmente ao seu encontro e implora que deixe a mãe permanecer mais uns dias sob observação, pelo menos até controlar os vómitos e as tonturas. Neste Alentejo de solidão e Sol implora-se. O acesso a direitos não é um direito mas uma regalia.

‘O risco de infecção aumenta a cada hora que ela passa no piso’, diz o “ele”.

‘O risco de infecção aumenta exponencialmente se for necessária uma passagem pelo serviço de urgências, como se prevê que aconteça daqui a umas horas’, diz o “nós”.

Aos 40 graus a filha recusa tirar a mãe do hospital. Fá-lo, por falta de opção, quando o Sol se aproxima do solo. A sintomatologia mantém-se. Três horas depois a filha liga para o hospital. Dada a cirurgia complexa realizada havia pouco mais de 48 horas e a existência de uma doença crónica descompensada, é informada que deve levar a mãe ao serviço de urgências.

‘O risco de infecção aumenta exponencialmente se for necessária uma passagem pelo serviço de urgências, como se prevê que aconteça daqui a umas horas’, havia dito o “nós”.

Por falta de opção, neste Interior do país, onde somos escravos de nós próprios, a filha liga para a Saúde 24. A Saúde 24 opta por chamar o INEM. O INEM opta por levar a mãe ao serviço de urgências.

A filha não pode gritar. E a culpa é uma magana solteira, que seduz sem se prender. Neste Alentejo de solidão e Sol, consentimos porque não existem “outros” que nos salvem “deles”.  A mãe passa a noite nas Urgências, sem que lhe apareçam ao pé quando necessita.

Ao sábado a mãe permanece com náuseas e tonturas, sem ser medicada na sequência da cirurgia nem para a doença crónica de que é portadora. A filha pede explicações. À mãe é novamente sugerida a alta. Mantinha as náuseas e as tonturas mas não havia vomitado a sopa. Era o suficiente. Para o “eles” ela estava boa. A filha exalta-se e recusa. Acusem-na de abandono mas a mãe não regressa a casa sem estar tratada.

Na Cirurgia não há camas para o internamento. A filha pede que o façam na Medicina Interna. A responsabilidade é da Cirurgia. A responsabilidade é da Medicina Interna. Mas a exigência de falar com os dois clínicos em simultâneo não é ouvida.

Na madrugada de domingo a filha retorna a casa para dormir no conforto da sua cama. Única e exclusivamente porque lhe garantiram que a mãe, alvo de uma cirurgia complexa havia três dias e com uma doença crónica descontrolada, passaria a noite numa maca no SO e não na cadeira onde estava desde a madrugada anterior. À mãe foram retirados todos os pertences pessoais para poder ficar em observação. A filha dormiu descansada sem a preocupação de lhe ligar de duas em duas horas para saber se estava a ser acompanhada. À filha mentiram. Mas foi a mãe quem sofreu as consequências.

Na manhã de domingo a filha telefona cedo para saber o estado da mãe. É-lhe dito que a mãe estava à espera de uma maca no SO. A mãe telefona à filha instantes depois. Já se encontrava no exterior do edifício com uma carta de alta e os pés totalmente negros de mais uma noite sentada num cadeirão.

A filha reage. De tão sufocante, o silêncio transforma-se em grito e ecoa. Cansada de suplicar, exige falar com o clínico responsável. Grita ao segurança e grita ao enfermeiro. Não é a eles dirigida a sua raiva e ela explica-lho. Exige-lhes que chamem o responsável. Não aceita intermediários. Grita porque nada mais pode fazer. Quer explicações. Quer compreender porquê.

Pedem-lhe que se acalme. Como se a calma demonstrada anteriormente tivesse resultado num tratamento digno à mãe. A filha grita porque precisa que a ouçam. A filha grita porque precisa olhar nos olhos de quem lhe negligenciou a mãe. Chama-lhes desumanos, incompetentes, negligentes. Mas a culpa, magana, lá vem solteira.

‘Não fui eu, foi o outro. Escreva uma reclamação.’

E a filha grita que reclamação nenhuma elimina a incompetência com que a mãe foi tratada. Queixa nenhuma elimina o sofrimento e os riscos a que foi, desnecessariamente, submetida. A filha grita e o clínico responsável agarra-a violentamente pelo braço e arrasta-a. A filha grita ainda mais alto. Todos vêem. Todos ouvem. Mas porque neste Interior não há “outros”, todos calam. A filha apresenta uma queixa-crime.

‘Se não gosta do tratamento aqui leve a sua mãe a outro lado ou trate-a em casa.’

E a filha sabe que, no Interior do país, neste Alentejo de solidão e sol, não há “outro lado”. A filha sabe que, por mais medíocres que sejam os meios, nem desses dispõe em casa. A filha sabe que a mãe continuará doente e voltará a necessitar “deles”.

A filha cala e consente, refém da sua condição.

15 setembro 2019

educação


 A Educação não transforma o mundo. Mas muda as pessoas. E as pessoas transformam o mundo” (Paulo Freire).
Há precisamente um ano aguardava o resultado da candidatura que havia feito ao mestrado em Desenvolvimento Comunitário e Empreendedorismo no Instituto Politécnico de Beja. Havia passado mais de uma década desde o término da minha licenciatura na Universidade do Algarve e a ideia de poder, finalmente, voltar a estudar entusiasmava-me.
No dia em que atravessei o portão para assistir à primeira aula vi-me novamente em frente à casa onde passei a infância, a pousar para a fotografia do meu primeiro dia na Escola Primária da Vidigueira. Era novamente a menina de franja que, com o caderno debaixo do braço, embarcava numa aventura que esperava ser maior que ela. A excitação era gritante. Sentia a leveza a empurrar-me os passos e a adrenalina a percorrer-me os poros. Estava verdadeiramente feliz. Voltar à universidade era sinónimo de conquista.
No dia em que ingressei no IPBeja firmei um contrato comigo mesma. Havia de usufruir daquela experiência em todo o seu esplendor. Volvido o percurso de aluna mediana no ensino secundário e na licenciatura, cruzava os dedos para que nada me fizesse perder o entusiasmo. A ausência de inspiração sempre me remeteu para o morno patamar da sobrevivência e esse é um lugar vazio e cinzento.
Porque a Educação é a mais poderosa de todas as armas, aprendi ao longo deste ano a reciclar energias. Aprendi a renovar a minha própria motivação. Aprendi a travar batalhas constantes sem perder o foco. Sem desviar a rota dos meus próprios objectivos. Sem baixar a cabeça. Sem descalçar as botas. Sem deixar de me agarrar às poucas vozes que se juntavam à minha a pedir que não desistisse.
Não perdi o entusiasmo mas os pés já não levitam. Arrastam-se. Estão pesados, cansados, feridos. Mas não se detêm. Começo a preparação da minha tese e, à semelhança dos desafios que tracei, ela é também pioneira. É arrojada e exigente. É excitante e desafiante. E a minha grande vitória é saber-me, apesar de todos os embates, de todas as tentativas de me fazer recuar e desistir, capaz de a executar.
Porque a Educação é a mais poderosa de todas as armas, hoje sei que a instituição de ensino que escolhi para me educar me assediou, me discriminou, me negligenciou enquanto aluna. Porque a Educação é a mais poderosa de todas as armas, vi os organismos que me deveriam proteger a encarar-me com desdém, a desacreditar-me, a desestabilizar-me, a levar-me à exaustão. Não verguei.
Enquanto instituição de ensino superior, que se deveria reger por padrões de rigor, transparência, competência, igualdade de tratamento e justiça, o Instituto Politécnico de Beja falhou comigo. Da Coordenação à Presidência, todas as instâncias falharam comigo. Todas elas, sem excepção, me negaram direitos essenciais. Todas elas, sem excepção, foram incompetentes no desempenho das suas funções. Todas elas, sem excepção, optaram por ignorar-me e fechar os olhos perante os factos.
Sim, o Instituto Politécnico de Beja falhou comigo. E falhar comigo é também falhar com todos os que contribuem, através de impostos, para a defesa de um sistema de ensino que promova a Educação e a Cidadania. Falhar comigo é falhar com o futuro e com o território.
O Instituto Politécnico de Beja assediou-me, discriminou-me, negligenciou-me. Falhou repetida e propositadamente comigo. E falhar comigo é deturpar os princípios básicos que justificam a sua existência.
Porque a Educação é a mais poderosa de todas as armas, hoje reconheço-me como vítima. De um crime que é punível por lei. E, precisamente pelo mesmo motivo, sou dotada de todas as ferramentas que me permitem lutar contra esse estatuto.
Porque a Educação é a mais poderosa de todas as armas, sou, apesar de toda a pressão e injustiça, a melhor aluna que já passou por aquele mestrado e estou hoje capacitada o suficiente para fazer frente ao sistema.

07 outubro 2018

nojo

Portugal enoja-me. Dá-me vómitos. É sujo. Pútrido. Decadente. Portugal fede. E os portugueses têm exactamente o país (de merda) que merecem. Porque a impunidade parece não se ter aqui feito sentir, os portugueses têm (exactamente) o que merecem.

O patriotismo causa-me náuseas. Revolta-me o estômago. Faz-me ter vontade de estripar o peito, não vá o mal propagar-se geneticamente. Portugal envergonha-me. Mas, se o país me causa repulsa, as suas gentes amedrontam-me.

Na mesma semana, as pseudo-feministas - iluminadas subitamente pelas sólidas correntes de pensamento facebookianas - decidem que a melhor forma de luta contra a violência doméstica é um (também ele pseudo) apagão feminino para se erguerem depois em uníssono na defesa do menino de ouro, acusando a grandessíssima puta que lhe quer extorquir uns tostões de uma campanha de marketing pessoal feita à custa (adivinhem!) de uma agressão sexual.

Ainda na mesma semana, as mesmas pseudo-femininistas continuam a publicar os grandes planos das (quiçá também elas pseudo) mamas numa ode aos últimos dias de Verão, elegendo depois, como trunfo, o facto de a menina não ter ido com ele para o quarto de arma apontada à cabeça. É que, de acordo com a iluminada linha de pensamento das amebas, se uma mulher vai com um homem para o quarto quer, claramente, ser alvo de violação. E se casa com um homem então aceita, prontamente, levar, amiúde, uns murros no focinho e uns pontapés nas trombas. Mas atenção aos comentários às fotos das minhas mamas. Eu queria era mostrar o pôr-do-sol lá atrás e é nisso que se devem focar.

No fundo, o índice de indignação reside em factores de ordem estética e financeira. É que o taxista João Máximo é velho, gordo e sebento. Um criminoso, por dizer que as meninas virgens servem para ser violadas. E Cristiano – o maior símbolo da grandeza nacional – joga à bola e ganha milhões. Uma vítima, injuriada, caluniada. Grandessíssima puta que se fartou de rir e dançar com ele. Sentenciamo-lo, sem questionar, a uma veemente inocência porque é esse o nosso papel enquanto portugueses.

Em dia nenhum fomos as 21 mulheres, mortas entre 1 de Janeiro e 12 de Setembro de 2018, por violência doméstica. Em dia nenhum fomos as 2.158 vítimas de crimes sexuais, registados pela APAV entre 2013 e 2016. Mas hoje somos todos Ronaldo. Porque o nosso patriotismo – acéfalo – é esse mesmo.

Calhando agora vamos todas à igreja acender uma vela pelas crianças vítimas de abuso sexual. Às mãos da igreja católica. Ou comprar o livro da Paula Bobone. Porque para pôr fim ao bullying basta que as crianças sigam para a escola de banho tomado e cabelo alinhado.

Obrigada, mundo, por não me fazeres ter vontade nenhuma de propagar a (vossa) espécie.

27 setembro 2018

angelita

Em Setembro de 1989 estavam na moda os sapatos pretos de verniz, destacados pelos peúgos brancos a assentar a meio da canela. Em Setembro de 1989 a minha mãe vestiu-me uma camisa com pintinhas e uma saia de ganga nova, com peitilho. Comprou-me uma mochila quadrada, de tecido azul escuro, sóbria, com um rebordo de fita vermelha.

Em Setembro de 1989 faltavam-me os dois dentes da frente. Tinha uma franja que pousava, direitinha, mesmo acima dos olhos. Foi assim que me apresentei no passeio em frente ao jardim de casa para a fotografia do meu primeiro dia de aulas.

A excitação misturava-se, naquela manhã, com uma pontada de desapontamento. Não iria ser aluna da Dona Noémia, a velha professora que, tantos anos antes, ensinara as letras ao meu pai, naquela mesma escola. Sucumbia à quebra de um padrão no qual acreditava residir um certo romantismo e isso desiludira-me. Desconhecia, até ali, o tamanho da aventura que me aguardava.

29 anos depois daquele Setembro, e mais de 11 após o término da minha licenciatura, vi-me, em memória, no passeio em frente ao jardim da minha casa de infância, a pousar para a mesma fotografia. Era dia de aniversário da Dona Angelita e eu dava, novamente, os primeiros passos numa instituição de ensino, para me matricular num mestrado. Com a coincidência e o restabelecer de um certo padrão recuperava, quase três décadas depois, aquela pontada de romantismo que julgava ter sido perdida.

A Dona Angelita é parte essencial do que sou. Não me moldou o feitio. Mas derrubou barreiras, desfez perímetros e arrasou fronteiras, criando espaço para que ele se pudesse expandir e crescesse. A Dona Angelita tem lugar cativo no círculo restrito das minhas pessoas imprescindíveis. E o seu posto é intransmissível.

Às vezes trocamos cartas. Partilhamos música. Amiúde um café e dois dedos de conversa. Mas palavra alguma será capaz de exprimir o seu impacto na formação do meu carácter e na definição dos eixos que compõem a existência.

A Dona Angelita foi a minha primeira professora. Foi mentora de um universo paralelo criado unicamente com o propósito de nos fazer crescer e sonhar, sem crivos. Se, durante décadas, me dediquei à infrutífera arte de reclamar de métodos de ensino é a ela que o devo. Se ainda hoje recuso o acordo ortográfico é a ela que atribuo a culpa. É que a Dona Angelita ensinou-me a pensar. Fez-me desenvolver a criatividade, a imaginação e o sentido crítico. E foi-me difícil aceitar que, tantos anos mais tarde, havia de me deparar com um sistema académico de formação de papagaios.

A Dona Angelita quis-nos a todos fora do rebanho. E uma mente que se abre a uma nova ideia jamais volta ao seu tamanho original. Não tivesse ela destapado o arco-íris e todo o meu mundo seria diferente.

A Dona Angelita será sempre uma referência. De carácter, de conhecimento, de humanidade, de métodos pedagógicos. A Dona Angelita será sempre a minha professora, a minha mentora. E viverá para sempre.

Há 29 anos arrancava naquela escola centenária um novo programa curricular, experimental, do qual a Turma dos Coelhinhos fazia parte. Todos os conteúdos programáticos se baseavam em produções da própria turma, sem auxílio de qualquer manual. Isso fez-nos ler. Desenvolveu-nos a escrita. Havia concursos literários semanais e abordagens ao teatro. Falava-se de astronomia e de história contemporânea. Editava-se, julgo que mensalmente, o jornal “O Balão”. A aprendizagem era prática, dinâmica, e a avaliação focava-se não na competitividade mas na cooperação. A Dona Angelita formava seres - humanos, pensantes, humanizados. A Dona Angelita era única. E sempre o será.

Em 17 anos de currículo académico tive menos de uma mão cheia de docentes a deixar-me marcas que considero sólidas. Nenhum deles pode, contudo, ser equiparado à Dona Angelita.

Este texto surge com um dia de atraso face ao seu aniversário e à minha matrícula num mestrado. Chega na véspera do arranque deste novo ano lectivo. Que, à semelhança daquele Setembro de 1989, o misto de excitação e desapontamento sejam o presságio para uma aventura maior que o imaginável.

Por todas as emoções, que dia algum conseguirei transpor para o papel, por esta pequena conquista (tornada imensa perante as batalhas já travadas), o meu OBRIGADA, DONA ANGELITA.

21 março 2018

isto não é um poema

Nunca escrevi um poema. Mal me alcançam os dedos, as palavras arrancam em debandada, fugidias, até ao final das linhas. Atropelam-se - afoitas, desordeiras, desnorteadas – numa corrida de sedução pela virgindade do papel. Querem-se pioneiras na conquista. Desordenadas, encostam-se umas às outras. Abraçam-se. Forçam-se. Amontoam-se. Fogem-me das mãos. E só param, em tropeço, quando lhes deito um ponto à frente. Aí alinham-se. E eu faço parágrafo.

Presas por um baraço ao silêncio dos lábios, pendem aos vendavais ou calmarias, imunes à coerência. Não dão poemas. Não são canção. Mas, se se soltam, arrastam-me o mapa da alma para um discurso sem crivo. Embriagam-se e expõem-me. Desenfreadas, revelam segredos. Sem filtros, desmascaram-me. As palavras. Só ao parágrafo me respeitam.

Nunca escrevi um poema. Nunca soube dosear as letras. Não tenho como condutar as frases. Nunca sei quando é o fim. E de nada quero só metade. Saciar-me-ia, sem este arremesso sombrio de manchas negras, se lhes soubesse tomar o peso. Não tendo como sabê-lo, exijo espaço. E tinta. E, como elas, digo tudo, tal comboio prestes a descarrilar. As palavras, paridas sem forma certa, nunca sabem o seu lugar.

Quis escrever-te. Poesia. Céu e chão. Ar e asas. Lua. Estrela. Amor-poeta. Eclipse. Mundo. E eu a viver em ti. Mas nunca soube escrever poemas. Talvez porque o poema já exista. E, sem lhe deitar um ponto à frente, sejas tu…

04 janeiro 2018

mãe

No dia em que fiz 18 anos a minha mãe enviou-me uma sms. “As dores do parto passaram. As do crescimento serão eternas. À minha menina o amor próprio desta mãe. E os beijinhos que, espero, transmitam uma sempre elevada auto-estima. Que consigas ler nos meus olhos as palavras de ternura que não consigo dizer-te.”

A minha mãe é uma mulher miudinha. Sobra-lhe em atitude tudo o que lhe escasseia em tamanho. A minha mãe enfrenta o mundo directamente nos olhos. E se ele não se amaga perante a imensidão da sua verticalidade, ela ergue-lhe o peito e alça-se nele. A minha mãe é mulher para impor respeito ao universo.

A minha mãe rodopia sobre si mesma quando ouve uma música de que gosta. Às vezes pego-lhe nos braços e dançamos juntas. Às vezes imagino que o faço. Um dia dei com ela embalada pelo Frank Zappa. Minutos depois pasmava-se a ouvir um grupo de charolas algarvias. Antes costumava cantarolar pela casa. E nós, por força da estupidez da idade, reclamávamos da escolha recair sempre no fado. Hoje falta-lhe a voz mas não a postura.

A minha mãe é a maior muralha alguma vez erguida. A vida bem que a defronta mas embate algum abala a solidez dos seus alicerces. Às vezes noto-lhe as fendas nos olhos pequeninos cor de amêndoa. Vejo-lhe o peso nos ombros franzinos. Mas a força, ah!, essa é a de uma carga inteira de cavalaria.

O colo da minha mãe é revestido de silêncios. Mas o seu afecto, também ele de poucas falas, transcende a extensão de mil abraços. Um dia perguntaram-lhe se eu era normal. Ela respondeu à letra. Mas foi num ataque de riso, repleto de orgulho, que mo contou. Ainda que nunca o digamos em voz alta orgulhamo-nos da anormalidade uma da outra.

A minha mãe é a mais sábia de todas as mulheres. É também a mais bela. Tem sempre resposta para as perguntas que nunca faço. Em vez de amor chama-me cromo. E quando sorri tudo o que existe sob o Sol se alinha em sintonia.

A minha mãe faz hoje anos e eu só disse que a amava uma vez. Que também ela consiga ler nos meus olhos todas as palavras de ternura que não tenho como dizer-lhe.

03 janeiro 2018

o amor...

O amor não enche palavras. Não me dá forma aos vocábulos. Não cria esboços em linhas. Não cabe na métrica da prosa. Não compõe textos. Não mancha, não suja, não enegrece estas páginas.

O amor não escreve poemas. Porque não sangra, o amor não se entende com a poesia. Fosse ele vadio! Vazio de inquietação, oco de desassossego, livre de tumultos, perde a voz. Silencia-se na virgindade do papel. Emudece. E liberta-me.

Podia hoje deixar todas as frases em branco, fantasma das mortes vividas. (Se não voltarmos a morrer não temos futuro, já As Intermitências da Morte sabiamente anunciava.) Hoje voltava-lhes as costas e despedia-me delas sem culpa. Não fosse o que lhes devo e remetia-as ao abandono. Forçava-as ao mesmo desalento de onde, tantas vezes, me retiraram.

Outrora antídoto não são hoje mais que uma rotina dolorosa que forço, acto supremo de respeito mas deserto de conteúdo. Hoje não tenho corpo para dar às letras. Não lhes acho alimento. Não sei como desenhá-las. Não lhes sinto a falta. Sem veneno não lhes encontro propósito. Não lhes sei dar ritmo ou intenção.

Insisto, rendida à teimosia maior de homenagear o hábito. Agarro-me à memória da escuridão a perder densidade perante o ritual de levar a caneta ao caderno mas ela foge-me. Não fosse o amor e estaria só, nesta ausência de alma para dar à escrita.

09 novembro 2017

novembro

Atrai-me a melodia que as letras produzem quando agarradas umas às outras. O abraço que desenham ao tomar corpo. O peso da própria palavra se desestruturada. Convicta e segura se completa. Instável se separada. Como se cada vocábulo entoasse a canção que Pink Floyd compôs. Together we stand. Divided we fall. Novembro.

Novembro despoleta uma dança silábica, erótica e sensorial, entre a língua e os lábios. Tango. Sedução, cedência, aproximação, ruptura. Repetição. Sem pressa ou atropelo, Novembro beija e repele. Novembro tem fim aberto. Suspiro que envolve e fascina. Novembro. NO-VEM-BRO.

Novembro tem firmeza e convicção. É sensual e dominante. Exuberante. Provocador e intenso. Novembro exibe-se. Alicia e corrompe de tão confiante. Novembro impõe-se. E revela-se altivo em cada uma das suas dimensões.

Novembro revestiu-se de arrogância quando o desafiei. E eu perdi. Ingénua, pu-lo em causa e, sedento de exuberância, ele atacou, silencioso. Atraiçoou-me. E eu perdi. Novembro chamou por mim e apunhalou-me. Agora castiga-me.

Novembro mutilou-me. Abriu-me fendas. Trouxe-me perdas. Ofereceu-me o vazio. E o vazio de Novembro pesa mais que o de todos os outros meses assentes uns sobre os outros. Novembro é um sádico. Abandona-me para se foragir. Mas volta, cíclico, cínico, trazendo-me as memórias e as amarguras dos abalos. Novembro...

24 outubro 2017

(des)igualdade

É-me recorrente ter vontade de esbofetear pessoas. Acontece-me com a frequência certeira com que os dias se sucedem uns aos outros. A fuga constante a essa tendência intrínseca é a prova maior do meu auto-controlo. Abomino este impulso natural mas sei-o verdadeiro. Forço as convicções a terem mais força que os estímulos exteriores. E domino-me. A muito custo, sabendo-me errante na essência, domino-me.

Em dias como o de hoje, em que se assinala a igualdade no seio de cada município, esse impulso é gritante. E eu fervo. Em sofrimento, empenho-me na tentativa de transformar um par de sopapos acompanhado de um grito aos ouvidos num método pedagógico que seja mais funcional. Mas o desalento custa-me. Cansa-me.

“Perdoai-os que eles não sabem o que fazem” não me serve de máxima. Não perdoo. Impinjo informação a quem não a procura. Explico, em paciência que dói, a quem não quer saber. Questiono e simplifico. Exemplifico. Mas a ignorância alheia transtorna-me. Incomoda-me e corrói-me. E eu não perdoo. Desculpo a falta de conhecimento e ofereço soluções. Mas não perdoo a indiferença. Não perdoo a ignorância. Porque este mundo também é meu.

Incomodam-me as caminhadas por uma causa. (De que serve tanta gente junta se não se chega a ninguém? Foda-se!) Incomodam-me as frases feitas e os vídeos históricos. (Outra vez a mesma conversa? Foda-se!) Incomodam-me os colóquios, as conferências e os debates, de participação livre, onde só vão os que já nutrem interesse pelo tema. (Quão difícil é perceber que é aos que não querem saber que é necessário chegar? Foda-se!) Incomodam-me os conceitos lapidados, uma e uma outra, em bases políticas que se renovam sem nunca atingir o patamar da acção prática. (Quantos nomes diferentes deve ter o mesmo problema antes de se procurar realmente uma solução? Foda-se!)


Chega de apelar à reflexão. Já chega! Já chega de gente que se diz a reflectir. Há décadas que se finge reflectir. Há décadas que se fazem estudos e relatórios. É preciso agir. É urgente fazer. É urgente informar. É urgente educar. É urgente o ensino de uma cidadania activa. É urgente uma aproximação às comunidades e uma intervenção, prática, no contexto escolar e familiar.

A mudança começa em nós. Mas quem não tem em si essa chama precisa de um estímulo exterior que permita a combustão. É que, afinal, não temos todos o mesmo peso sobre a terra.

10 setembro 2017

.

Procurei por ti em todos os rostos, julgando ver pedaços teus em cada um. Esperei-te a cada um dos instantes desta noite inteira. E quis prolongá-la para lá de todas as horas, sabendo-a a última. Arrastei-a enquanto pude, inventado cigarros que fumar, tempo que dizer.

Quando os rostos se esgotaram esperei, imóvel, que me surpreendesses. Não me mexi, não fosse perder-me do teu encontro. Mas o teu abraço não chegou. E o frio que veio da ausência da tua vontade entranhou-se-me na pele em teu lugar e enregelou-me a alma. O mundo doeu-me. E as lágrimas soltaram-se, ainda mornas de tanto querer. Chorei até que a noite se finasse. E tu nunca chegaste.

Quis “abrir-me contigo, desabafar contigo, falar-te da minha solidão”. Achei que compreenderias. Mas tu nunca vieste. E as palavras da canção que sei de cor e que hoje podia ter sido nossa tiveram como único fado o meu abandono. “O Bairro do Amor é uma zona marginal, onde cada um tem de tratar das suas nódoas negras sentimentais”.


Podia ter-te amado...

22 julho 2017

embriaga-te!

Quero o mundo inteiro. Todo o universo. De um trago só. Em todos os instantes, num único. Em cada partícula de ar. De todas as partículas de ar que são minhas e tuas e nossas e que, por nos beijarem sem sabermos, nos deixam unidos. Quero bebê-lo de cada letra de todas as palavras. E que todas as palavras tenham alma e essência e vida própria. E que ela me abalroe com a fúria de um tornado. Que me impluda em emoções e colapsos. Que me arrebate. E me viva por dentro.

Quero tudo ao mesmo tempo. E que o tempo seja agora. Que seja sempre agora. Como o tormento intrínseco dos poetas. E que o amor, seja, também ele, inteiro como o mundo, todo como o universo. Que seja cada célula do mundo inteiro, de todo o universo. E, na singularidade de um momento, a elevação da soma de um milhão de paixões instantâneas acumuladas. Que expluda em magnitude. O amor.

Porque tenho pressa, quero tudo ao mesmo tempo. E que o tempo seja já. Porque se é para ser efémero que seja intenso. E que tenha o tudo que somos no mínimo que há para fazer. Que seja a embriaguez e a ressaca. O estímulo e o orgasmo. O carrossel e a montanha-russa. A rampa e o muro. No mesmo trago. Em todos os instantes, num único.

Que sobrevivamos aos embates. Que transformemos o refugo em felicidade. Que a tornemos faísca e chama e lume, enquanto houver combustível. Que nos incendiemos. Que possamos arder. Que nos deixemos arder. E que haja, de quando a quando, um igual que nos ampare, não nas quedas mas na vontade volátil e ilusória de podermos, um dia, render-nos. Que saibamos sempre que existem outros. E que é o seu peso que equilibra o cosmos.


Aos amores vadios. Aos loucos. Poetas. Solitários. Românticos. Amantes. “Porque bebemos, sabemos coisas.”

07 julho 2017

no expectations

No expectations, dizes tu. E o fogo, a alastrar em mato seco, queda-se perante o esmorecimento, expectante. Cede à frigidez da terra, na ausência repentina de combustível, e dissipa-se.

No expectations, dizes tu. Como um pedido de desculpas precoce, atempado, na ânsia de desresponsabilização pelos danos que o incêndio possa provocar. Conheces a história e decoraste o desfecho, inflexível à eventualidade de uma reviravolta. Detesto cobardes!

No expectations, dizes tu. Porque grandes expectativas geram grandes desapontamentos, justificas, afastando da consciência a culpa, num acto intrínseco de protecção. Haverá vazio maior que viver sem expectativa?

Cumpro o papel cordial de te dar resposta, já sem género definido, e aceno. No expectations. Rendo-me. E as explosões enclausuram-se e perdem fôlego. O fogo extingue-se. E o incêndio é controlado antes de acontecer. É o fim antes do início ter tido tempo de ser sonhado.

É a possibilidade de magia desfeita, numa ofensa à acidentalidade do amor. É o ideal de liberdade a agrilhoar mais que a solidão, na ilusão utópica de que é possível viver sem correr riscos emocionais. Almas quietas vivem mais tempo. Mas morrem mais cedo.

Recuso uma existência sem expectativa. E, face à aparente inevitabilidade da desilusão, entrego-me à probabilidade, ínfima mas concreta, de rebentarem fogos-de-artifício. Adormecer sem ter com que sonhar é o mais solitário de todos os actos.

07 junho 2017

34

Passaram sete dias desde os meus 34 anos certos. 33 anos e 17 dias desde que o meu pai endereçou uma carta à tia que vivia em Lisboa a dar conta do nascimento do meu irmão. Dizia-lhe que o mundo que me circundava se resumia a duas palavras: cão – que dirigia, especialmente, ao recém-nascido, aos cães, gatos, galinhas e formigas - e burro – para designar os próprios mas ainda as cabras, as ovelhas, as vacas e qualquer objecto de maior dimensão. Papá e mamã eram, nessa altura, extensões de mim própria.

Contava o meu pai, no seu bater pulsante de teclas sobre a máquina de escrever que o meu avô materno trouxera da Alemanha, que a menina já exibia um feitio digno de muitas palmadas. Aos 11 meses apresentava demasiada personalidade para um corpo ainda tão pequeno. Curiosa. Refilona. E, acima de tudo, teimosa. Herdara, de forma somada, o pior dos dois progenitores.

Encontrei a carta, dactilografa há mais de três décadas e recuperada pela minha mãe após a morte da tia do meu pai, dentro de um livro numa das pilhas junto ao sofá. E escolhi a véspera do meu aniversário para a ler, antes de me voltar a tornar na irmã 11 meses e 13 dias mais velha.

Imaginei o meu pai debruçado sobre o tampo de madeira da mesa da sala, à luz ténue do candeeiro, madrugada adentro agarrado à máquina, a escrever, orgulhoso das façanhas dos filhos. E o ruído das letras a caírem sobre o papel quebrando o silêncio da casa. Olhei para a minha mãe e dei-lhe um abraço. E também eu me senti orgulhosa do que sou.

Aprendi com os meus pais a distinguir os verdadeiros eixos da vida. E no dia tempestuoso em que, contrariada, ousei pôr-me em causa, questionando os ensinamentos que me transmitiram, foi através de uma carta, escrita à distância de 33 anos e 17 dias, que o meu pai me recordou dos mesmos. Parece que os progenitores encontram sempre forma de nos confortar e conduzir.

A menina que, 33 anos e 17 dias (mais os sete que entretanto passaram) depois, se curva, madrugada adentro, sobre o computador herdou muito mais que a soma da curiosidade e da teimosia dos genes. Herdou a sabedoria para distinguir o importante do acessório. E, principalmente, a certeza de que se manterá fiel a si mesma. Porque há o importante. E há o acessório.

Tornei-me 33 anos e 17 dias (mais os sete que entretanto passaram) mais curiosa, mais refilona, mais teimosa. E na véspera do meu trigésimo quarto aniversário lembraram-me o quão importante é orgulhar-me disso.

Tornei-me 33 anos e 17 dias (mais os sete que entretanto passaram) mais sonhadora, mais inconformada, mais inadaptada. E orgulho-me disso. Porque a revolta sempre será um acto de coragem. E a solidão é a mais sábia das companhias.

Enquanto os putos do bairro iam à catequese para, em casa, chamarem nomes aos avós, eu inventava a tabuada do 17 e do 79 e escrevia histórias à máquina. Da mesma forma que enquanto alguns se preocupam em tirar selfies com a banda como pano de fundo eu tento escutar a música. Porque há o importante. E o acessório.

De um modo geral, nunca senti grande afeição pelo ser humano. E cedo percebi que não tinha qualquer intuito de integração. Quando o meu pai me explicou que, contrariamente a todas as regras gramaticais, Liberdade e Amizade se deveriam sempre escrever com maiúscula percebi a mensagem.

Gosto de gente estranha. Gosto de gente esquisita. Gosto de gente desconfortável. Gosto de gente desequilibrada. Gosto de gente solitária.

Gosto de sonhadores. Gosto de curiosos. Gosto de lutadores. Gosto de rebeldes. Gosto de loucos.

Gosto de gente imprevisível. Gosto de gente impulsiva. Gosto de gente com alma.

Gosto de gente simples na forma de estar, complexa na forma de ser. Gosto de gente autêntica. Gosto de gente que é gente, imperfeita e genuína.

E não gosto de clichés. Não gosto de gente-cliché. Não gosto de frases feitas. Não gosto de convenções. Não gosto de protocolos. Não gosto de palmadinhas nas costas. Não gosto de beijos que não tocam a cara. Não gosto de gente que goste de muita gente.


Porque gosto do importante. Não gosto do acessório. E não há maior herança que essa.

25 julho 2016

pousio

Já não esvoaçam pássaros negros. Não há olhos de veios sangrentos a inundar-me a vista. Não há monstros, de silenciosa persuasão, a empurrar-me os passos por carreiros sempre errantes. Não há fantasmas a alimentar-me de água salgada a raiva. A dança da loucura, esquizofrénica e demente, deixou de me embalar.

Não há mais vocábulos gritantes, afoitos e desenraizados, a enrolarem-se-me na língua, cuspindo ofensas em chamas. Não há punhos cerrados sobre a carne ao comando do pensamento desfeito. Nem ódio com cheiro a memória a soltar-se-me dos poros, a abandonar a pele e a envolver, de rompante, o ar.

Há o cansaço que pesa ainda nos ossos a história. Se o passado tentou atropelar o presente foi porque o consenti. Mas, sem pássaros negros, olhos de veios sangrentos, monstros, fantasmas e loucura, a consciência retoma, sem pressas, a soberania. E a calma ganha terreno à dormência. As pedras voltam ao trilho para deixar antever a estrada. E eu caminho.

Há ainda aquela dor miudinha que acompanha a saudade. Que sufoca devagarinho para defender um propósito, fazendo-se notar. Mas que já não é estridente, aguçada, cortante. Já não esventra, não perfura, não desassossega. Não mata. Só mói.

Guardo ainda as tuas fotografias. Não são estáticas. Tiveram sempre um movimento que é infinito, perpétuo. Têm cheiro e temperatura e tonalidade e luz e sombra, daí permanecerem vivas. “Às vezes as fotografias que tenho de ti duram três passos. Às vezes duram um acorde. Às vezes duram a suspensão do ar entre uma inspiração e uma expiração. Às vezes duram o silêncio todo. Às vezes cabes nelas inteiro. Às vezes não. Em muitas estás em pedaços, esquissos, frestas, que só eu sei a que parte pertencem.” Lembras-te?

A escuridão vai desvanecendo, num arco-íris de tons cinzentos que aclaram. Depois do pousio, os dias retomarão a cor. Hão-de florescer ao seu próprio ritmo. Como nós.

Aquieta-me saber que nos deixámos livres. Que nos libertámos para redescobrir quem somos. E que a despedida pôde ser medida em beijos. As últimas linhas que escrevi sobre ti contrariaram tendências, não sabendo a lágrimas ou a desgosto. Foi com um “amo-te”, seguido do teu nome, que pus fim a tantas páginas doridas. Dir-te-ei que te amo muitas vezes em silêncio. E, sem cobranças, talvez consiga voltar a erguer-me e a dizer que também gosto de mim.

02 dezembro 2015

castigo


O tempo que te dou, na ilusão de me pertencer, pesa-me mais que a ti. É mais demorado. Corpulento. Tem espinhas e caroços. Sabe a sal. É ácido e corrosivo. Mastiga-me, morde-me, espezinha-me.

Castigo-me na tentativa vã de te punir. Vítima e carrasco. E a balança da dor – termómetro efervescente da raiva – pende errante, desnorteada, descalibrada, tendenciosa. Acalco as minhas próprias cicatrizes. Realçam-se os medos que as levam à fossilização. Assentam na angústia. E firmam-se, obedientes, perpétuos.

Não verto lágrimas. Secaram-se-me por dentro no poço desmanchado do peito. As fendas reabrem, sem prazo para sarar. E o vazio, lotado de mágoas, é doloroso. Ocupa volume igual ao motivo da perda. E, por isso, eu perco. Perco sempre. Perco-me sempre no labirinto turvo do pesar. Vergo-me à agonia e mirro. Morro. Mas a amargura não se retrai. Sobrevive, desembaraçada, mutante, imune.

E a memória não me engana. Desembacia-se. Esfrega-se na brancura gélida para me deixar ver. Enfrenta-me, desafiadora. E se lhe levanto a voz ergue-se, altiva e dominante. Mutila-me. Fere-me a vista. Assalta-me os restos já mortos do sossego. Incita-me. Condena-me.

E eu anuo.

01 dezembro 2015

implosão

Não tenho portas nem janelas. Não tenho fendas, sombras, interrupções ou correntes de ar. Não há vértices ou esquinas. Não sopra o vento nem entra a luz. Não sobra o espaço. Não sai o eco.

Não há música ou silêncio. Só o ruído. O ruído. Repetitivo, insistente, monocórdico, incessante. O ruído. E o eco. E o fumo. Doentio. Maléfico. Tóxico. Nocivo. Viciante.

Não há sal na erosão da pele. Não há sol. Não há sul. Não há norte. Não há dor na frigidez da carne. Não há sangue. Não há morte. Não há distância. Não há extensão. Não há saudade. Não há corrosão.

Não roo os ossos que não os alcanço. Não rasgo os nervos ou puxo tendões. Não esventro entranhas. Não cavo crateras. Não ceifo emoções.

E os músculos que não se movem. Inflexíveis na perda de elasticidade. Teimosos. Dementes. E o cinzento que escurece. Enegrece, sujo, cansado.

Silencio-me.

Impludo.

05 novembro 2015

carência


Falta-me a força na ponta da caneta. Falta-me agilidade nos dedos. Falta-me motivo nas letras. Faltam-me naufrágios. Turbulência e distúrbios. Falta-me o ruído. O risco. O desconcerto. O desencanto. O desalento. O desconforto.
Falta-me a falta de Norte. A ausência de fronteiras. O mar agitado. O desassossego. Faltam-me descolagens sem cinto. Travagens bruscas. Atracagens atribuladas. Falta-me a estrada e as esquinas. Sobra-me o ócio.
Faltam-me náuseas e nódoas negras. Faltam-me dores e lamentos. Faltam-me problemas diferentes para as mesmas soluções. Falta-me a falta que me fazia o que está longe. Falta-me o ar.
Falta-me vontade quando me sobra tempo. Sobra-me cansaço quando me falta inquietação. Foge-me o desconsolo. Assenta-me a letargia. E eu mirro. Afundo-me no assento cavado deste sofá, já moldado à minha figura. Copio e colo. Copio e colo. Copio e colo.
Assisto à passividade mórbida do curvar metódico dos ponteiros. Acompanho a lentidão. Encosto-me. Encolho-me. Deixo-me talhar. Sou filtrada. E o que se separa esvai-se no fumo corrupto de mais um cigarro. Desaparece.
Falta-me a falta dos outros algemada à minha própria ausência. Falta-me a fome. Falta-me a sede. Falta-me a míngua. Falta-me a saudade. Falta-me o medo.
O mundo cresceu. Não me cabe nos braços. Falta-me lembrar-me que o quero perseguir. Falto em mim.

08 outubro 2015

Tóia


No quintal da Tóia havia um tanque de pedra à sombra de uma figueira. Havia uma outra árvore, menos robusta, encostada à qual construímos, um dia, uma cabana. Lá dentro guardámos um tapete e uma cafeteira velha e, nessa tarde, foi tudo o que eu, o meu irmão e o Júlio precisámos para sentir que tínhamos uma vida.
A casa da Tóia não era feita de tijolo nem assentava a direito no chão. Vista de fora destoava de todas as outras. Parecia inclinada. Às vezes caíam bocados da parede da rua. O chão era vermelho. Vivo e frio. Na casa de entrada havia um sofá, rijo e comprido, uma poltrona e uma mesa quadrada de madeira. Do lado direito dois degraus altos davam para o quarto. Seguia-se a cozinha e mais duas casas sem nome, e sem porta, até ao quintal.
A casa da Tóia era diferente de todas as casas que eu conhecia. Não tinha banheira nem frigorífico. Não tinha electrodomésticos. Não tinha janelas por isso também não tinha luz. Os banhos eram dados num alguidar azul, com água aquecida no bico do fogão. O açúcar, a manteiga e o leite eram guardados no parapeito da chaminé. Havia candeeiros a petróleo e um armário, de portas verdes, com copos pequeninos.
A Tóia era diferente de todas as pessoas que eu conhecia. Tinha muitos anos. Muitos anos e muitas rugas. Vestia-se sempre de preto. Saia, meias-calças, blusa, casaco e lenço na cabeça. Verão ou Inverno. Saia, meias-calças, blusa, casaco e lenço na cabeça. Nunca lhe vi a forma do cabelo nem a cor dos braços.
A Tóia era a pessoa mais velha que eu conhecia e por isso era especial. Trazia sempre doces dentro das algibeiras. Rebuçados embrulhados num plástico vermelho às bolinhas ou tabletes de chocolate. Era baixinha e movia-se de costas curvadas, mas nunca me pareceu que lhe custasse subir a ladeira do relógio. Nunca andou à escola nem aprendeu a escrever o nome. Chamava-se Antónia Júlia. Mas para nós foi sempre a Tóia.
A Tóia ofereceu-me as minhas primeiras canetas de bico-de-feltro – um pacote de seis da Mollin - e ensinou-me a fazer uma omelete. Aos fins-de-semana dava-me sempre cinquenta escudos. E não hesitava em dar mais vinte a cada um dos vizinhos que estivesse a brincar comigo. Aos dias de semana, quando eu a visitava depois da escola, comprava-me uma empada ou um salame.
A primeira vez que me lembro de cantar foi na sua casa. “A Minha Casinha”. A porta estava aberta e o sol batia nos ladrilhos. Lembro-me de ver o marido da Tóia sentado no sofá mas é aí que temo que a memória me atraiçoe. Talvez essa parte seja fruto do próprio imaginário porque, tanto quanto me contaram, o marido da Tóia morreu na altura em que eu nasci. Sei que se chamava João e que não era boa pessoa.
A Tóia dava-me sempre a mão quando andávamos na rua. Levava-me do lado passeio. No dia em que percebi que ela era a pessoa mais velha que eu conhecia mudámos de posição. Ela dava-me a mão mas era eu que ia do lado da estrada. Por uma questão de segurança, lembro-me de pensar.
Quando mudámos de casa e deixámos de a ir ver todos os dias a Tóia carregou-se ainda mais de preto. Mais do que na roupa passou a exibi-lo na alma. A Tóia era minha tia-avó e nunca teve filhos. Era a pessoa mais velha que eu conhecia e por isso eu tratava-a com o respeito de um monumento. Pouco depois morreu e os meus pais não me deixaram ir ao funeral. Lembrar-me-ei sempre dela, de olhar meigo, sorriso doce e chocolates nas algibeiras. Saia, meias-calças, blusa, casaco e lenço na cabeça.
Hoje fui ao centro de saúde e vi muitas Tóias. Quis abraçá-las a todas. Quis levá-las a todas pela mão. Elas do lado do passeio. Eu do lado da estrada. Por uma questão de segurança. Porque todas as Tóias deste mundo têm o direito de ser amadas e protegidas. Como a minha foi.

09 setembro 2015

os outros

Vejo-os de braços erguidos. Punhos cerrados. Lábios ardentes. Sedentos. A espumar pelos cantos da boca. A salivar. Erguem os braços e gritam. Uivam, de tão entorpecidos que andaram. E o ódio é ensurdecedor. E ecoa. (Agora é que é!) Palavras certas. Certezas. Porque as ouviram de alguém, que as ouviu de um outro alguém, ditas, em primeira mão, sabe-se lá bem por quem. Mas eles sabem. E a (sua) verdade é soberana. Absoluta.
 
Erguem os braços, gritam e marcham. Passo certo. Confiantes. Alinhados. Efusivos. Juntos são mais. E mais são maiores. Maiores valem mais. Rebanho domado. Exército moldado. Matilha feroz. Famintos de razão. Cegos de racionalidade. Marionetas!
 
Vejo-os de braços no ar. Agitadores. (Cães raivosos!) Propagandistas. (Palhaços!) Detentores da experiência. (Ignorantes!) Conhecedores de causa. (Idiotas!) Erguem os braços e uivam – os profetas. Patetas!
 
Envergam a verdade. Sempre a verdade. Respiram soberania. E falam dos outros. Os outros e os maus. Os outros que são os maus. E eles - que são bons (e espertos) - sabem-no. Obtusos! Ridículos!
 
E o medo. O medo que assusta. O medo que amedronta. O medo que apavora. Ai, o medo! Ai, que medo! Mas enchem o peito e lá vão, com medo e tudo, a encabeçar o pelotão dos revoltados. Cobardes!
 
Os que vão atrás não têm medo. É só receio. É receio, que é aquela coisa mais portuguesinha, de gente que nem para ter medo a sério serve. Têm receio e isso é mais que suficiente para se juntarem à causa. Antes isso do que nada. Antes isso que outra coisa qualquer. Que a época dos charlies já era e as pessoas agora querem-se é cultas. Cultas e (in)formadas. Trogloditas!
 
E é o naufrágio da humanidade partilhado até à exaustão no corpo morto de uma criança. Mas espera lá… É que, se não tivesse morrido, teria vindo cá parar. E só no Porto há uma centena de crianças a dormir na rua. Portanto, ainda bem que morreu. Ainda bem que morreu porque, passadas 48 horas, a moda já mudou e a gente tem é de se afirmar. E se é para ser que seja agora. É que o europeu de futebol ainda está longe. E nós somos Portugal. E primeiro estamos nós. E as eleições estão à porta. E o PNR mostra-nos toda a verdade. (Nenhum dos adjectivos que conheço reflecte verdadeiramente aquilo que me apetece chamar-vos. Baldes de merda fica muito aquém do desejado, acreditem!)
 
O meu pai ensinou-me o significado de liberdade. Assumi que, mesmo não concordando com determinada opinião, lutaria pelo seu direito à expressão. Hoje quebro essa promessa. E, ao quebrá-la, aproximo-me daquilo que abomino. Mas dessa aproximação ideológica tenho apenas receio. Medo - medo daquele que assusta, que amedronta, que apavora - tenho de vós, que hoje me rodeiam. Que são marionetas. Cães raivosos. Palhaços. Ignorantes. Idiotas. Patetas. Obtusos. Ridículos. Cobardes. Trogloditas. Baldes de merda. Vocês, sim - que vivem na porta ao lado, que frequentam o café da esquina, que partilharam comigo uma carteira na escola, que ouviram a mesma canção -, metem-me medo. E nojo. E repugnância. E repulsa. Para mim, são vocês os outros. E, por isso, é de vós que quero distância.

26 julho 2015

avó

A minha avó teve sempre 68 anos. Estou certa de que terá sido mais nova. Tenho a certeza de que ultrapassou essa idade. Mas, no meu inconsciente de menina de franja, a minha avó tinha, todos os dias, 68 anos.
 
Chamava-se Isabel. Isabel Januária, como, às vezes, sublinho para enaltecer a tremenda falta de gosto da minha família na escolha de segundos nomes para as suas meninas. Maria Inocência e Emília do Sacramento de um lado. Isabel Januária, Carminda Francisca, Antónia Júlia, Damiana Rosa do outro. Lisa Bela mesmo ao meio.
 
A minha avó chamava-se Isabel mas eu chamava-lhe só avó. Para quê dar-lhe um nome se a minha avó era única? A minha avó criou um filho, também ele único, que teve sempre duas mães. Viu-o crescer numa planície imensamente curta para a sua grandeza. Ver-se forçada a mandá-lo para longe deixou-lhe marcas que tempo nenhum foi capaz de sarar.
 
A minha avó morada na rua principal da vila, mesmo em frente ao nosso bairro, numa casa comprida, de quartos sufocantes, sem janelas, que desembocava num quintal de muros baixos, onde havia um cão vadio, mas com licença e caderneta, e um casal de animais. Viveu sempre de postigo aberto. A nossa vida era também, naquela altura, a vida que era dos outros.
 
Viu nascer os dois netos com um intervalo de onze meses. Criou-os, na preocupação silenciosa de que o mal pudesse, um dia, chegar. Chorou a vida inteira nunca os ter visto baptizados. Criou dois netos mas deu de comer a muitos outros que nunca tiveram avó. Papossecos com marmelada que ela mesma fazia e canecas de café com leite. Rodilhas folhadas e garrafas de sumo Garcia em dias de aniversário. Isostar e fatias d’ovo antes das corridas do 25 de Abril.
 
Contrariamente ao meu irmão, passei a maior parte da vida a achar que alimentar-me era um acto altamente sobrevalorizado. A minha avó munia-se de todos os truques existentes no universo para me fazer ingerir fosse o que fosse. E, se por milagre dos deuses, nalgum momento eu dizia que gostava de bacalhau com pimentos assados ela arranjava maneira de o pôr na mesa numa questão de minutos. Isso ou sopas da panela. Ou qualquer tipo de carne, desde que me dissesse que era de um dos nossos coelhos. Os bolos que fazíamos eram sempre de laranja. E foram sempre os melhores bolos do mundo.
 
Na altura do Carnaval as irmãs juntavam-se a ela. Preparar a época era um acto que envolvia todas as mulheres da família. Começava-se por retirar todos os objectos dos móveis da cozinha. Depois passavam-se vários dias a fazer recheio, a amassar, a moldar e a fritar centenas de pastéis de grão e borrachos, que haviam de repousar em cima de qualquer superfície plana da casa e ser, posteriormente, distribuídos por toda a vizinhança. Lembrar-me-ei sempre da minha avó de bata e lenço na cabeça, braços enfarinhados, a explicar-me, com um sorriso genuíno, como rechear alguns dos pastéis com algodão, para oferecer aos vizinhos menos amigos de dar. Normalmente, calhavam ao Zé da Alice, dono da mercearia, e ao Zé Maria da Mariana Mota.
 
Em Setembro, havia um dia específico em que madrugávamos. A minha avó pegava em mim, no meu irmão e no meu avô e lá íamos, a pé, à feira dos queijinhos, assim que o sol nascia. A feira era só isso – queijinhos. Bancas e bancas de queijinhos. E homens e mulheres de navalha em punho, a dar-nos de provar. Os sacos que trazíamos haviam de durar até ao ano seguinte.
 
A minha avó era uma pessoa de medos. Havia nela um nervosismo intrínseco que nunca compreendi. O meu pai trabalhava sempre até tarde. E ela ficava, de pé, atrás do postigo, pela madrugada adentro, incapaz de adormecer até ouvir o carro cruzar a rua. Chorou  de preocupação durante duas semanas quando os meus pais me deixaram, aos 13 anos, ir a uma viagem a Londres. Parte dela morreu quando nos mudámos para Beja para ficarmos mais perto da escola para onde haveríamos de ir.
 
Era uma mulher de fé e quando lhe perguntei quem era esse tal de deus disse-me que era um homem grande, que estava em todo o lado. Ainda hoje, a única imagem que tenho de Jesus é a de um gigante, magro e com barba, com uma perna enorme à entrada da vila e a outra junto ao largo da cascata da Vidigueira.
 
A minha avó dizia que eu e o meu irmão lhe fazíamos a cabeça em água. Todos os dias discutíamos um com o outro. Depois uníamo-nos para discutir com ela. Ou com outra pessoa qualquer. Certa tarde de inverno decidimos que já não queríamos ser amigos do nosso vizinho do lado. Pegámos em todos os marcadores que tínhamos e riscámos-lhe as paredes da rua. Guardo, com uma ponta de remorsos, a imagem da minha avó, com um lata de cal na mão, a pintar a casa do João Paulo, à chuva, antes que a mãe dele chegasse e denunciasse a nossa decisão aos meus pais.
 
Com ela aprendi o significado do amor. Nunca a vi dar um beijo ou um abraço ao meu avô, nunca os vi de mãos dadas nem a dormir na mesma cama. Ele ressonava e ela não estava para isso. Mas ouvia-a dizer-lhe: tomara que tu vás primeiro que eu, homem, que sem mim não te governas! E foi através desse romantismo rude, característico das gentes do campo, que percebi que, de facto, eles se amavam.
 
A minha avó dizia que o 28 era o seu número. Nasceu em 1928, a 28 de um mês que já não recordo, casou aos 28 anos e veio a falecer a 28 de Setembro de 1999, deixando o homem sem saber como se governar. Recuso-me a fazer contas para saber que idade tinha ao certo. A minha avó há-de ter sempre 68 anos. E eu hei-de ter sempre saudades suas.