tag:blogger.com,1999:blog-32698276470171368912024-03-13T13:02:30.900+00:00no mundo dos outrosnum espaço que não me pertence.
num mundo que não é o meu.
eu.
no mundo dos outros.LiSahttp://www.blogger.com/profile/08970335715551972477noreply@blogger.comBlogger258125tag:blogger.com,1999:blog-3269827647017136891.post-29618464565746976472021-03-08T10:12:00.005+00:002021-03-08T10:12:52.892+00:00coisas de moços!<p><br /></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Comecei
a cumprimentar a Dona Joaquina por lhe achar graça ao ar. E ela começou a
retribuir. A Dona Joaquina tem para lá de 80 anos e é costume vê-la com vagar na
esplanada da praça, sozinha e sorridente. Gosto de gente solitária e confortável
com a própria solidão.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Amiúde
pergunta se pode ganhar ar da volta e sentar-se comigo. Conta-me histórias da
miséria e do custoso que foi criar as filhas. Coube-lhe a ela. Como cabia sempre,
naquele tempo, às mulheres.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Labutou
muito. Em casa e fora dela. Penou outro tanto. Nem a fruta que caía, a
apodrecer, das árvores a patroa lhe permitia acariar. Do que rendia o trabalho
dava parte à Casa do Povo. Mas parte de pouco será sempre muito pouco para dar
alguma coisa. Hoje pede aos moços novos que passam na rua para lhe carregarem
os sacos e lá abala, calçada abaixo, rente ao passeio, a dar uso à companhia.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">A
minha avó Joana nunca quis que a minha mãe lavasse no tanque ou desse baixinhos
de cal nas paredes. Como ela o havia feito. Como faziam as moças da aldeia. A vida
era para lhe correr de melhor feição. O meu avô Zé impôs à minha tia que se
livrasse de, de homem algum, apanhar as primeiras. É que as primeiras jamais
seriam órfãs. Lá em casa não se falava de feminismo. Dava-se-lhe, sem saber, o
nome de amor.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">O
apartamento que comprei trazia na fechadura das portas restos do papel onde
vinham embrulhadas as chaves. Lembrei-me de todas as casas-de-banho públicas em
que entrei. Como homem, o meu companheiro tardou em perceber a analogia. Como mulher,
cedo aprendi a contornar os avanços dos espectadores indesejados.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Aos
seis anos descobri que, durante todo o Ensino Primário, não havia de utilizar uma
única vez as casas-de-banho da escola. As portas não trancavam e eu não gostava
de ter olhos alheios postos em mim. Coisas de moços!<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Nos
intervalos, as meninas escapavam dos meninos que lhes queriam levantar as saias
ou dar beijinhos na boca. Eles riam. Elas fugiam e gritavam. Coisas de moços! Serenava-me
não atrair a atenção do sexo oposto. Mas aterrorizava-me a ideia de que pudesse,
dia algum, vir a ser remetida para o lugar de presa. Sem margem para posições
neutras, antes predadora.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Ouvi
o primeiro piropo quando ainda conseguia contar, pelos dedos das mãos, as voltas
da Terra sobre o Sol. <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Boquinha doce</i>.
Larguei a bicicleta e fugi nauseada pelo quintal da minha avó adentro para não
voltar a ver a travessa naquela tarde de Verão. Coisas de moços!<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Trazia,
na testa, o reflexo da puberdade e, no bolso, um walkman de pilhas gastas naquele
sábado em que saí do dentista. Um par de mãos a agarrar-me, na rua, o par de
mamas que mal tinha. E, por trás, o mesmo riso. Aquele riso dos meninos que
perseguem as meninas nos intervalos. A mesma satisfação. Perversa. Sádica.
Cruel. O jogo do predador e da presa. Coisas de moços!<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">O
meu grito, a mesma agonia. O desconforto. O incómodo. E o nojo. A raiva. A
revolta. E a vergonha. Depois, o desalento. Por fim, a quase habituação à
normalização social do assédio e da violência. Coisas de moços?<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Nas
vésperas de mais um Dia Internacional da Mulher recebi a notificação de que a
queixa que apresentei contra um médico do Serviço de Urgências, que me agarrou
violentamente por um braço e me arrastou, havia sido arquivada.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">De
acordo com o Ministério Público, violência que é violência tem de deixar
sequelas. Físicas. E visíveis, em exame pericial realizado volvidas mais de 48
horas. Como se, efectivamente, a alma não sentisse o que os olhos são, mais
tarde, incapazes de ver.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">A narrativa
remete-me irremediavelmente para o tão enraizado <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Estava mesmo a pedi-las!</i>, para o tão afamado <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Pôs-se a jeito!,</i> para o tão vulgar <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Ela fez alguma!</i> E lá ecoa o desculpabilizante <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Quem lhe manda começar a gritar com o homem?! </i>Homem algum deve ser
publicamente enxovalhado.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Histérica!
Desequilibrada! Frustrada! Ela. Feminino.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Questiono-me
se uma médica teria tido, para comigo, a mesma postura. Deixo a dúvida pairar. Mas
tenho por certo um desfecho diferente caso a minha voz ressoasse de um corpo de
homem. Às palavras não seria associado histerismo mas agressividade. Ao
desequilíbrio chamariam insatisfação. À frustração ameaça.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">A
segurança seria accionada. E eu sairia sem que braço algum me agarrasse
violentamente e arrastasse. Mas, neste jogo de poder, a estridência da minha
voz não foi intimidante o suficiente para requerer reforços ou exigir o
cumprimento do protocolo. <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Com esta posso
eu bem!<o:p></o:p></i></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Até
quando serão coisas de moços?</span><o:p></o:p></p>LiSahttp://www.blogger.com/profile/08970335715551972477noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3269827647017136891.post-87429686565062017462020-12-18T16:29:00.006+00:002020-12-18T16:29:37.302+00:00ser<p><span style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Houve
um dia em que estacionei em segunda fila para ir, num instante, ao quiosque comprar
tabaco. Deixei o computador e a mala em cima do banco da frente mas tranquei as
portas. Cruzei-me com um rapaz de “ar estranho”, que se encostou à traseira de
um carro com o olhar fixo no meu.</span></span></p><p><span style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Olhei
para trás quatro vezes, desconfiada. Não uma. Não duas. Não três. Quatro vezes.
Sabia que as portas estavam trancadas mas tinha o computador e a mala no banco
da frente. Apressei-me a voltar. Abri a porta. Sentei-me. Olhei para o lado. E
vi o rapaz de “ar estranho” a apagar o cigarro e a entrar calmamente no carro a
que estava encostado – aquele a que eu tinha cortado a saída.</span></span></p><p><span style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Senti
vergonha de mim própria. Amaldiçoei esta desconfiança interna, injustificada,
sistémica, estruturante, que advém do que não me é familiar. Abri o vidro e
pedi desculpas. Ele sorriu e acenou. O rapaz de “ar estranho” estava apenas a
deixar-me tratar dos meus afazeres, sem se preocupar que isso atrasasse os
dele.</span></span></p><p><span style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Questionei-me
sobre o que terei achado estranho no seu ar e a resposta atingiu-me como um murro.
Não me pareceu português!</span></span></p><p><span style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Há
tempos fiz um estudo de caracterização da população migrante de determinado
concelho. Entrevistei dezenas de pessoas que deixaram os seus países em busca
de uma vida melhor. Como também eu o fiz há quase uma década. No dia da
primeira sessão sabia ter 23 homens de origem asiática à minha espera, em
contentores isolados numa zona rural, longe da vista e das gentes. A pessoa que
me deveria acompanhar falhou e eu vi-me a fazer a viagem sozinha, angustiada,
hesitante, amedrontada.</span></span></p><p><span style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Parei
no caminho para fumar. Forcei-me a acalmar-me. Quando lá cheguei tremia-me a
voz. Estendi a mão àquele que se apresentou como representante da comunidade e
acendi outro cigarro. Os restantes só me cumprimentaram depois deste lhes dizer
para o fazerem. A explicação era simples: muitos eram muçulmanos e,
culturalmente, não tinham por hábito tocar em mulheres.</span></span></p><p><span style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Era
uma manhã chuvosa de Janeiro. Hora de pequeno-almoço. Perguntaram-me se queria
um chá. Aceitei. Abri uma caixa de bolachas que levara comigo e partilhei-as
com eles. Limparam um dos contentores para que eu pudesse sentar-me a fazer as
entrevistas. Entravam dois a dois e os restantes esperavam à porta,
pacientemente sem questionar. Só quando lhes disse que não precisavam de estar
ao frio e à chuva é que se sentiram à vontade para entrar. Ofereceram-me uma
tablete de chocolate. Contaram-me as suas histórias.</span></span></p><p><span style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Passei
dois dias com eles nos contentores. Eu e 23 homens, cuja língua eu não falava e
a cultura não conhecia. Quando nos despedimos deram-me um abraço. Carregaram-me
os sacos. Acompanharam-me ao carro. Cantaram. Agradeceram tê-los ouvido.</span></span></p><p><span style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Quando
voltei a casa tinha à minha espera um par de braços. Tinha o jantar ao lume e o
aquecedor ligado. Dormi na segurança que conferem os laços familiares e os
afectos. E isso foi o suficiente para reconhecer a minha tremenda condição de
privilegiada.</span></span></p><p><span style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Recebo
mensagens todas as semanas. Perguntam por mim e pela minha família. Quando a
minha mãe adoeceu telefonavam todos os dias a saber dela. Ateia, digo-lhe, às
vezes, que recuperou tão depressa porque todos os migrantes que conheço rezaram
por ela aos seus deuses.</span></span></p><p><span style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">O
Yasir conseguiu comprar casa numa aldeia. Pediu-me ajuda para fazer os contratos
da luz e da água. O Zuhaib casou e mandou-me uma fotografia da festa. O Kumar está
agora na Alemanha porque até Fevereiro não há trabalho em Portugal. Deixou a
agricultura e agora faz pizzas. Há-de voltar em Março. O Muhammad já conseguiu
o visto de residente e mandou-me uma fotografia no momento em que o foi
levantar. Diz que foi o dia mais feliz da sua vida. O Doctor já tem cá a
família. Está à espera de conseguir fazer um curso de português para pedir
reconhecimento de competências e voltar a exercer a profissão de dentista. O
Kul tem estado doente. Eu e o meu companheiro fomos com ele ao Centro de Saúde
e depois ao hospital. Já se sente melhor mas ainda não pode voltar ao trabalho.
Mandou-me uma fotografia da família. Estamos convidados para o casamento da filha
mais velha, em Março, no Nepal.</span></span></p><p><span style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Recebi
postais de Happy Jummah, Happy Diwali e até Feliz Natal. Hoje é Dia
Internacional das Migrações. Mandei a todos uma mensagem. Mas uma mensagem não
maximiza o pouco que posso fazer por eles. Uma mensagem e algum apoio não
compensam a forma desumana como teimamos em tratar quem só quer uma vida
melhor.</span></span></p><p><span style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">O
escritor C. Douglas Lummis escreveu que as pessoas “não são iguais porque a lei
natural assim decreta. Elas são iguais no sentido em que enfrentam a mesma
tarefa existencial: devem viver uma vida”. Reconhecer-me, diariamente, como
sendo intrinsecamente racista, xenófoba e até sexista é o primeiro passo para
combater a discriminação. Tomar consciência do meu preconceito é fundamental
para conseguir eliminá-lo.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; text-align: justify;"><o:p></o:p></p>LiSahttp://www.blogger.com/profile/08970335715551972477noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3269827647017136891.post-73463808964429642372020-12-18T16:27:00.004+00:002020-12-18T16:28:00.558+00:00pessoas<p style="text-align: left;"><span style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">A
casa onde vivia com a minha mãe, o meu pai e o meu irmão tinha muitos livros
nas prateleiras. Eu gostava de ler e escrever mas também de andar de bicicleta
e de roubar maçanitas dos galhos das árvores que caíam para fora dos muros da
horta do ‘Botas de Cigano’. Na casa da minha avó e do meu avô, do outro lado da
estrada, não havia livros. Mas havia outras coisas. Uma marquise com bilhas de
azeite. Melões e melancias que duravam o ano quase todo. Queijinhos e
marmelada. Galinhas e ilhéus. Às vezes um casal de cabras. Borregos. Coelhos.
Ao serão descascávamos favas e ervilhas. No Verão dormíamos no fresco do chão
do corredor, com o postigo aberto.</span></span></p><p style="text-align: left;"><span style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">No
meu bairro havia muitas crianças. As que tinham pai e mãe. As que só tinham
avó. As que tinham muitos irmãos. As que não tinham nenhum. As que podiam ser o
que quisessem. As que não podiam ser mais do que lhes era permitido. A minha
avó dava sandes de marmelada e canecas de café com leite a todas. A minha mãe
dava-lhes boleia para a escola até ao limite de capacidade do nosso Subaru azul
escuro, sob o compromisso de todas termos de o empurrar nas manhãs frias de Inverno.</span></span></p><p style="text-align: left;"><span style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">A
avó da Célia dava-nos muitas vezes o lanche. A da Alexandra deixava-nos ir para
o tanque que tinha no quintal. Aos sábados de manhã, o Zé Maria e a Mariana ou
a Leonor e o Eduardo levavam a vizinhança às compras ao Prisunic de Beja. O pai
da Ana Lúcia e da Lígia trouxe bicicletas sob encomenda para (quase) toda a
gente. Quem não tinha, esperava a sua vez de andar.</span></span></p><p style="text-align: left;"><span style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">A
minha tia avó que vinha de Lisboa trazia-nos os brinquedos mais modernos. A
minha tia avó que vivia na vila trazia-nos as algibeiras cheias de rebuçados e
chocolates. A minha tia avó que vivia em Lisboa ofereceu-me um computador
portátil quando terminei a licenciatura. A minha tia avó que vivia na vila
ofereceu-me as minhas primeiras seis canetas de bico de feltro.</span></span></p><p style="text-align: left;"><span style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Ao
longo do meu percurso profissional e académico entrevistei ministras e
secretários de Estado. Fiz teatro com a D. Alice que toda a vida guardou gado e
com a D. Otília que foi professora. Dancei com o Sr. António que é pastor e com
o Sr. Zé que anda à cortiça. Lanchei à da D. Lurdes. Apanhei boleia no tractor
do Sr. Joaquim. Fui ao medronho com a D. Lucília. Escrevi o prefácio do livro
da D. Rita. Bebi aguardente com todos eles. Dei concertos num bar nas Olhas e
nas FNAC do Algarve. Subi ao palco tanto em S. Barnabé, no meio da serra, como
na RTP. Almocei no João das Cabeças e jantei no Casino de Vilamoura. Gosto das
migas d’A Pipa e das sopas de cação d’O Pinguinhas, em Beja. Adoro os gaspachos
e as linguiças assadas da Associação Malta Dura, nos Moinhos de Vento, Almodôvar.</span></span></p><p style="text-align: left;"><span style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Talvez
seja por ter aprendido tanto, com tanta gente diferente, que a crise de
pensamento me custe tanto a aceitar. Parto sempre do princípio de que há quem
não tenha ferramentas para ver mais do que o que a vista alcança não por opção mas
por falta de oportunidade. Com base nessa premissa, e normalmente sem que tal
mo seja pedido, procuro fornecer informação, indicadores, outras perspectivas
que possam ajudar a abrir horizontes. A educação é a base da cidadania. Ainda
que a tarefa possa ter por trás alguma arrogância e prepotência o seu motor é a
tentativa – muitas vezes, vã – de tentar capacitar, no sentido de evitar que a
falta de conhecimento seja limitadora da liberdade.</span></span></p><p style="text-align: left;"><span style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Há
dias ousei comentar uma publicação em defesa da greve de fome que foi
amplamente partilhada. Contestei o protesto, usando um conjunto de argumentos, procurando
mostrar aos seus inúmeros apoiantes de outros sectores da restauração – não de
luxo, não de Lisboa – a forma como não estavam a ser representados. Apenas porque
me custa ver quem está desesperado a depositar esperanças num movimento que é
elitista, fraudulento e ultrajante para quem, efectivamente, passa fome e se
encontra em severas dificuldades.</span></span></p><p style="text-align: left;"><span style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Apesar
de todas as críticas que recebi – a grande maioria em forma de ofensa –, o
retorno aqueceu-me a alma. É que, para lá dos 600 sinais de apoio ao
comentário, recebi pedidos de amizade e mensagens privadas de pessoas que não
conheço. E todas elas tinham algo em comum – uma tremenda humanidade. Todas
terminaram com um agradecimento, com um ‘bem-haja’. Todas tiveram a forma de
abraço. O que saberá melhor que um abraço inesperado?</span></span></p><p style="text-align: left;"><span style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">E é
esta espontaneidade de afecto – tão bonita e genuína porque sem expectativas –
que me restabelece o equilíbrio e reforça a esperança de um mundo melhor. É por
existir este contraste que tantas vezes digo que odeio pessoas. Nada sabe
melhor que levar estes doces murros no estômago.</span></span></p><p style="text-align: left;"><span style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">À
Nana, à Teresa, ao João, à Patrícia e a todas as outras pessoas que me fizeram
chegar mensagens, O MEU OBRIGADA.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; text-align: justify;"><o:p></o:p></p>LiSahttp://www.blogger.com/profile/08970335715551972477noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3269827647017136891.post-25445695661673134272020-08-10T17:26:00.007+01:002020-08-10T18:07:00.009+01:00INFERNO<p style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;"><span style="text-align: justify;">Viver no Interior do país implica
que tenhamos, demasiadas vezes, de nos contentar com o medíocre. Incapacitados
pela impossibilidade de escolha, somos constantemente recordados do patamar de
inferioridade em que nos encontramos, que conduz a uma inevitável aceitação. Há
o “nós” e o “eles”. Perante a ausência de “outros” que nos sirvam de
alternativa, consentimos a cegueira e rendemo-nos. Somos escravos da nossa própria
condição. Reféns e carrascos de nós mesmos.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">A teoria da evolução das espécies
de Darwin dita a sobrevivência do mais forte. Assim é também no jogo de
mercados. A competição induz a melhoria. E a possibilidade de escolha de quem
consome liberta. A liberdade instrui e capacita. E ao aumentar o poder de uns,
reduzindo o monopólio de outros, minimiza o fosso que nos separa “deles”. Mas
não aqui. Não neste Interior, onde a baixa densidade populacional nos remete
para a categoria de inexistentes.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Exigir direitos implica, aqui,
medir consequências. Como se os direitos não o fossem. Mendigamos o medíocre na
certeza de sem ele nada termos. Comemos a côdea dura e seca porque, há muito,
perdemos o gosto ao pão. À fraqueza do estômago junta-se a revolta da alma. E o
silêncio, que só grita por dentro. Somos “nós” a depender “deles”. Somos “nós”
a precisar “deles”.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">No Interior do país, neste Alentejo
de solidão e Sol, a mãe é, à quarta, alvo de uma intervenção cirúrgica complexa
do foro oncológico. À quinta de manhã vomita no piso, como consequência da
descompensação de uma doença crónica de que é portadora. É-lhe, ainda assim,
dada alta, quando a temperatura exterior se aproxima dos 40 graus.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">É entregue à filha numa
cadeira-de-rodas no interior do átrio do hospital, com a informação de que se
encontra muito mal disposta. Colapsa no momento em que se levanta e permanece a
vomitar no chão. A cadeira-de-rodas havia voltado para a origem no instante em
que a deixara. Não havia outra onde a colocar. Pede à recepção que telefonem
para o piso. Dizem-lhe que, apesar de ainda se encontrar no interior do edifício,
com alta dada o protocolo a encaminha para as Urgências. Perante a recusa, uma
enfermeira vem buscá-la e leva-a novamente para o piso. Não lhe é feito
qualquer tratamento nem pedido o parecer da Medicina Interna. A cirurgia correu
bem e o lugar dela é em casa. Naquele quintal não há mais espaço e os outros
têm donos próprios. É de mau tom incomodar, que o excesso de trabalho já abunda.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Neste mesmo Interior do país, à
sexta de manhã a mãe tem novamente alta, antes sequer do clínico a ter visto. O
documento estava passado desde o dia anterior e é preciso racionar recursos. A
filha pede para falar com o clínico, que se recusa a atendê-la por telefone.
Vai presencialmente ao seu encontro e implora que deixe a mãe permanecer mais uns
dias sob observação, pelo menos até controlar os vómitos e as tonturas. Neste
Alentejo de solidão e Sol implora-se. O acesso a direitos não é um direito mas
uma regalia.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">‘O risco de infecção aumenta a cada
hora que ela passa no piso’, diz o “ele”.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">‘O risco de infecção aumenta exponencialmente
se for necessária uma passagem pelo serviço de urgências, como se prevê que
aconteça daqui a umas horas’, diz o “nós”.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Aos 40 graus a filha recusa tirar
a mãe do hospital. Fá-lo, por falta de opção, quando o Sol se aproxima do solo.
A sintomatologia mantém-se. Três horas depois a filha liga para o hospital.
Dada a cirurgia complexa realizada havia pouco mais de 48 horas e a existência
de uma doença crónica descompensada, é informada que deve levar a mãe ao
serviço de urgências.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">‘O risco de infecção aumenta exponencialmente
se for necessária uma passagem pelo serviço de urgências, como se prevê que
aconteça daqui a umas horas’, havia dito o “nós”.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Por falta de opção, neste
Interior do país, onde somos escravos de nós próprios, a filha liga para a
Saúde 24. A Saúde 24 opta por chamar o INEM. O INEM opta por levar a mãe ao
serviço de urgências.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">A filha não pode gritar. E a
culpa é uma magana solteira, que seduz sem se prender. Neste Alentejo de
solidão e Sol, consentimos porque não existem “outros” que nos salvem “deles”. A mãe passa a noite nas Urgências, sem que lhe
apareçam ao pé quando necessita.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Ao sábado a mãe permanece com náuseas
e tonturas, sem ser medicada na sequência da cirurgia nem para a doença crónica
de que é portadora. A filha pede explicações. À mãe é novamente sugerida a
alta. Mantinha as náuseas e as tonturas mas não havia vomitado a sopa. Era o
suficiente. Para o “eles” ela estava boa. A filha exalta-se e recusa. Acusem-na
de abandono mas a mãe não regressa a casa sem estar tratada.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Na Cirurgia não há camas para o
internamento. A filha pede que o façam na Medicina Interna. A responsabilidade
é da Cirurgia. A responsabilidade é da Medicina Interna. Mas a exigência de
falar com os dois clínicos em simultâneo não é ouvida.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Na madrugada de domingo a filha
retorna a casa para dormir no conforto da sua cama. Única e exclusivamente
porque lhe garantiram que a mãe, alvo de uma cirurgia complexa havia três dias e
com uma doença crónica descontrolada, passaria a noite numa maca no SO e não na
cadeira onde estava desde a madrugada anterior. À mãe foram retirados todos os
pertences pessoais para poder ficar em observação. A filha dormiu descansada
sem a preocupação de lhe ligar de duas em duas horas para saber se estava a ser
acompanhada. À filha mentiram. Mas foi a mãe quem sofreu as consequências.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Na manhã de domingo a filha
telefona cedo para saber o estado da mãe. É-lhe dito que a mãe estava à espera
de uma maca no SO. A mãe telefona à filha instantes depois. Já se encontrava no
exterior do edifício com uma carta de alta e os pés totalmente negros de mais
uma noite sentada num cadeirão.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">A filha reage. De tão sufocante,
o silêncio transforma-se em grito e ecoa. Cansada de suplicar, exige falar com
o clínico responsável. Grita ao segurança e grita ao enfermeiro. Não é a eles
dirigida a sua raiva e ela explica-lho. Exige-lhes que chamem o responsável. Não
aceita intermediários. Grita porque nada mais pode fazer. Quer explicações.
Quer compreender porquê.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Pedem-lhe que se acalme. Como se
a calma demonstrada anteriormente tivesse resultado num tratamento digno à mãe.
A filha grita porque precisa que a ouçam. A filha grita porque precisa olhar
nos olhos de quem lhe negligenciou a mãe. Chama-lhes desumanos, incompetentes,
negligentes. Mas a culpa, magana, lá vem solteira.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">‘Não fui eu, foi o outro. Escreva
uma reclamação.’<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">E a filha grita que reclamação
nenhuma elimina a incompetência com que a mãe foi tratada. Queixa nenhuma
elimina o sofrimento e os riscos a que foi, desnecessariamente, submetida. A
filha grita e o clínico responsável agarra-a violentamente pelo braço e
arrasta-a. A filha grita ainda mais alto. Todos vêem. Todos ouvem. Mas porque
neste Interior não há “outros”, todos calam. A filha apresenta uma
queixa-crime.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">‘Se não gosta do tratamento aqui
leve a sua mãe a outro lado ou trate-a em casa.’<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">E a filha sabe que, no Interior
do país, neste Alentejo de solidão e sol, não há “outro lado”. A filha sabe
que, por mais medíocres que sejam os meios, nem desses dispõe em casa. A filha
sabe que a mãe continuará doente e voltará a necessitar “deles”.<o:p></o:p></span></p>
<span style="font-size: 11pt; line-height: 115%;"><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana; font-size: 11pt;">A filha cala e consente, refém da sua condição.</span></div></span>LiSahttp://www.blogger.com/profile/08970335715551972477noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3269827647017136891.post-43333320526608747762019-09-15T15:46:00.001+01:002019-09-15T19:07:59.186+01:00educação<br />
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 6.0pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span></span><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">“<i>A Educação não transforma o mundo. Mas muda as pessoas. E as pessoas
transformam o mundo</i>” (Paulo Freire).</span><br />
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 6.0pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 6.0pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Há precisamente um ano aguardava o resultado da candidatura que havia
feito ao mestrado em Desenvolvimento Comunitário e Empreendedorismo no Instituto
Politécnico de Beja. Havia passado mais de uma década desde o término da minha
licenciatura na Universidade do Algarve e a ideia de poder, finalmente, voltar
a estudar entusiasmava-me.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 6.0pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">No dia em que atravessei o portão para assistir à primeira aula vi-me
novamente em frente à casa onde passei a infância, a pousar para a fotografia
do meu primeiro dia na Escola Primária da Vidigueira. Era novamente a menina de
franja que, com o caderno debaixo do braço, embarcava numa aventura que
esperava ser maior que ela. A excitação era gritante. Sentia a leveza a
empurrar-me os passos e a adrenalina a percorrer-me os poros. Estava
verdadeiramente feliz. Voltar à universidade era sinónimo de conquista.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 6.0pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">No dia em que ingressei no IPBeja firmei um contrato comigo mesma. Havia
de usufruir daquela experiência em todo o seu esplendor. Volvido o percurso de
aluna mediana no ensino secundário e na licenciatura, cruzava os dedos para que
nada me fizesse perder o entusiasmo. A ausência de inspiração sempre me remeteu
para o morno patamar da sobrevivência e esse é um lugar vazio e cinzento.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 6.0pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Porque a Educação é a mais poderosa de todas as armas, aprendi ao longo
deste ano a reciclar energias. Aprendi a renovar a minha própria motivação.
Aprendi a travar batalhas constantes sem perder o foco. Sem desviar a rota dos
meus próprios objectivos. Sem baixar a cabeça. Sem descalçar as botas. Sem
deixar de me agarrar às poucas vozes que se juntavam à minha a pedir que não
desistisse.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 6.0pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Não perdi o entusiasmo mas os pés já não levitam. Arrastam-se. Estão
pesados, cansados, feridos. Mas não se detêm. Começo a preparação da minha tese
e, à semelhança dos desafios que tracei, ela é também pioneira. É arrojada e
exigente. É excitante e desafiante. E a minha grande vitória é saber-me, apesar
de todos os embates, de todas as tentativas de me fazer recuar e desistir, capaz
de a executar.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 6.0pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Porque a Educação é a mais poderosa de todas as armas, hoje sei que a
instituição de ensino que escolhi para me educar me assediou, me discriminou, me
negligenciou enquanto aluna. Porque a Educação é a mais poderosa de todas as
armas, vi os organismos que me deveriam proteger a encarar-me com desdém, a
desacreditar-me, a desestabilizar-me, a levar-me à exaustão. Não verguei.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 6.0pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Enquanto instituição de ensino superior, que se deveria reger por padrões
de rigor, transparência, competência, igualdade de tratamento e justiça, o
Instituto Politécnico de Beja falhou comigo. Da Coordenação à Presidência,
todas as instâncias falharam comigo. Todas elas, sem excepção, me negaram
direitos essenciais. Todas elas, sem excepção, foram incompetentes no
desempenho das suas funções. Todas elas, sem excepção, optaram por ignorar-me e
fechar os olhos perante os factos.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 6.0pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Sim, o Instituto Politécnico de Beja falhou comigo. E falhar comigo é também
falhar com todos os que contribuem, através de impostos, para a defesa de um sistema
de ensino que promova a Educação e a Cidadania. Falhar comigo é falhar com o
futuro e com o território.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 6.0pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">O Instituto Politécnico de Beja assediou-me, discriminou-me,
negligenciou-me. Falhou repetida e propositadamente comigo. E falhar comigo é deturpar
os princípios básicos que justificam a sua existência.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 6.0pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Porque a Educação é a mais poderosa de todas as armas, hoje reconheço-me
como vítima. De um crime que é punível por lei. E, precisamente pelo mesmo
motivo, sou dotada de todas as ferramentas que me permitem lutar contra esse
estatuto.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 6.0pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Porque a Educação é a mais poderosa de todas as armas, sou, apesar de
toda a pressão e injustiça, a melhor aluna que já passou por aquele mestrado e
estou hoje capacitada o suficiente para fazer frente ao sistema.</span><o:p></o:p></div>
</div>
LiSahttp://www.blogger.com/profile/08970335715551972477noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3269827647017136891.post-56950992073818220132018-10-07T12:11:00.005+01:002018-10-07T12:31:21.500+01:00nojo<span style="font-family: "verdana" , sans-serif; text-align: justify;">Portugal enoja-me. Dá-me vómitos. É sujo. Pútrido. Decadente.
Portugal fede. E os portugueses têm exactamente o país (de merda) que merecem. Porque
a impunidade parece não se ter aqui feito sentir, os portugueses têm (exactamente)
o que merecem.</span><br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">O patriotismo causa-me náuseas. Revolta-me o estômago. Faz-me
ter vontade de estripar o peito, não vá o mal propagar-se geneticamente.
Portugal envergonha-me. Mas, se o país me causa repulsa, as suas gentes
amedrontam-me.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Na mesma semana, as pseudo-feministas - iluminadas subitamente
pelas sólidas correntes de pensamento facebookianas - decidem que a melhor
forma de luta contra a violência doméstica é um (também ele pseudo) apagão
feminino para se erguerem depois em uníssono na defesa do menino de ouro,
acusando a grandessíssima puta que lhe quer extorquir uns tostões de uma
campanha de marketing pessoal feita à custa (adivinhem!) de uma agressão
sexual.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Ainda na mesma semana, as mesmas pseudo-femininistas continuam a
publicar os grandes planos das (quiçá também elas pseudo) mamas numa ode aos
últimos dias de Verão, elegendo depois, como trunfo, o facto de a menina não
ter ido com ele para o quarto de arma apontada à cabeça. É que, de acordo com a
iluminada linha de pensamento das amebas, se uma mulher vai com um homem para o
quarto quer, claramente, ser alvo de violação. E se casa com um homem então aceita,
prontamente, levar, amiúde, uns murros no focinho e uns pontapés nas trombas.
Mas atenção aos comentários às fotos das minhas mamas. Eu queria era mostrar o
pôr-do-sol lá atrás e é nisso que se devem focar.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">No fundo, o índice de indignação reside em factores de ordem
estética e financeira. É que o taxista João Máximo é velho, gordo e sebento.
Um criminoso, por dizer que as meninas virgens servem para ser violadas. E
Cristiano – o maior símbolo da grandeza nacional – joga à bola e ganha milhões.
Uma vítima, injuriada, caluniada. Grandessíssima puta que se fartou de rir e
dançar com ele. Sentenciamo-lo, sem questionar, a uma veemente inocência porque
é esse o nosso papel enquanto portugueses.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Em dia nenhum fomos as 21 mulheres, mortas entre 1 de Janeiro
e 12 de Setembro de 2018, por violência doméstica. Em dia nenhum fomos as 2.158
vítimas de crimes sexuais, registados pela APAV entre 2013 e 2016. Mas hoje
somos todos Ronaldo. Porque o nosso patriotismo – acéfalo – é esse mesmo.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Calhando agora vamos todas à igreja acender uma vela pelas
crianças vítimas de abuso sexual. Às mãos da igreja católica. Ou comprar o
livro da Paula Bobone. Porque para pôr fim ao bullying basta que as crianças
sigam para a escola de banho tomado e cabelo alinhado.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Obrigada, mundo, por não me fazeres ter vontade nenhuma de
propagar a (vossa) espécie.</span></div>
LiSahttp://www.blogger.com/profile/08970335715551972477noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3269827647017136891.post-75294845648057294552018-09-27T14:51:00.000+01:002018-10-07T12:18:53.159+01:00angelita<span style="font-family: "verdana" , sans-serif; text-align: justify;">Em Setembro de 1989 estavam na
moda os sapatos pretos de verniz, destacados pelos peúgos brancos a assentar a
meio da canela. Em Setembro de 1989 a minha mãe vestiu-me uma camisa com
pintinhas e uma saia de ganga nova, com peitilho. Comprou-me uma mochila
quadrada, de tecido azul escuro, sóbria, com um rebordo de fita vermelha.</span><br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Em Setembro de 1989 faltavam-me
os dois dentes da frente. Tinha uma franja que pousava, direitinha, mesmo acima
dos olhos. Foi assim que me apresentei no passeio em frente ao jardim de casa
para a fotografia do meu primeiro dia de aulas.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">A excitação misturava-se, naquela
manhã, com uma pontada de desapontamento. Não iria ser aluna da Dona Noémia, a
velha professora que, tantos anos antes, ensinara as letras ao meu pai, naquela
mesma escola. Sucumbia à quebra de um padrão no qual acreditava residir um
certo romantismo e isso desiludira-me. Desconhecia, até ali, o tamanho da
aventura que me aguardava.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">29 anos depois daquele Setembro, e
mais de 11 após o término da minha licenciatura, vi-me, em memória, no passeio
em frente ao jardim da minha casa de infância, a pousar para a mesma fotografia.
Era dia de aniversário da Dona Angelita e eu dava, novamente, os primeiros
passos numa instituição de ensino, para me matricular num mestrado. Com a
coincidência e o restabelecer de um certo padrão recuperava, quase três décadas
depois, aquela pontada de romantismo que julgava ter sido perdida.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">A Dona Angelita é parte essencial
do que sou. Não me moldou o feitio. Mas derrubou barreiras, desfez perímetros e
arrasou fronteiras, criando espaço para que ele se pudesse expandir e crescesse.
A Dona Angelita tem lugar cativo no círculo restrito das minhas pessoas imprescindíveis.
E o seu posto é intransmissível.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Às vezes trocamos cartas. Partilhamos
música. Amiúde um café e dois dedos de conversa. Mas palavra alguma será capaz
de exprimir o seu impacto na formação do meu carácter e na definição dos eixos
que compõem a existência.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">A Dona Angelita foi a minha
primeira professora. Foi mentora de um universo paralelo criado unicamente com
o propósito de nos fazer crescer e sonhar, sem crivos. Se, durante décadas, me
dediquei à infrutífera arte de reclamar de métodos de ensino é a ela que o
devo. Se ainda hoje recuso o acordo ortográfico é a ela que atribuo a culpa. É
que a Dona Angelita ensinou-me a pensar. Fez-me desenvolver a criatividade, a
imaginação e o sentido crítico. E foi-me difícil aceitar que, tantos anos mais
tarde, havia de me deparar com um sistema académico de formação de papagaios.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">A Dona Angelita quis-nos a todos
fora do rebanho. E uma mente que se abre a uma nova ideia jamais volta ao seu
tamanho original. Não tivesse ela destapado o arco-íris e todo o meu mundo
seria diferente.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">A Dona Angelita será sempre uma
referência. De carácter, de conhecimento, de humanidade, de métodos pedagógicos.
A Dona Angelita será sempre a minha professora, a minha mentora. E viverá para
sempre.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Há 29 anos arrancava naquela escola
centenária um novo programa curricular, experimental, do qual a Turma dos
Coelhinhos fazia parte. Todos os conteúdos programáticos se baseavam em produções
da própria turma, sem auxílio de qualquer manual. Isso fez-nos ler.
Desenvolveu-nos a escrita. Havia concursos literários semanais e abordagens ao
teatro. Falava-se de astronomia e de história contemporânea. Editava-se, julgo
que mensalmente, o jornal “O Balão”. A aprendizagem era prática, dinâmica, e a
avaliação focava-se não na competitividade mas na cooperação. A Dona Angelita
formava seres - humanos, pensantes, humanizados. A Dona Angelita era única. E
sempre o será.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Em 17 anos de currículo académico
tive menos de uma mão cheia de docentes a deixar-me marcas que considero
sólidas. Nenhum deles pode, contudo, ser equiparado à Dona Angelita.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Este texto surge com um dia de
atraso face ao seu aniversário e à minha matrícula num mestrado. Chega na
véspera do arranque deste novo ano lectivo. Que, à semelhança daquele Setembro
de 1989, o misto de excitação e desapontamento sejam o presságio para uma
aventura maior que o imaginável.<br /><br /><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Por todas as emoções, que dia
algum conseguirei transpor para o papel, por esta pequena conquista (tornada
imensa perante as batalhas já travadas), o meu <i>OBRIGADA, DONA ANGELITA</i>.</span></div>
LiSahttp://www.blogger.com/profile/08970335715551972477noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3269827647017136891.post-58548709462963057302018-03-21T22:34:00.002+00:002018-03-21T22:35:08.502+00:00isto não é um poema<span style="font-family: verdana, sans-serif; text-align: justify;">Nunca escrevi um poema. Mal me
alcançam os dedos, as palavras arrancam em debandada, fugidias, até ao final
das linhas. Atropelam-se - afoitas, desordeiras, desnorteadas – numa corrida de
sedução pela virgindade do papel. Querem-se pioneiras na conquista. Desordenadas,
encostam-se umas às outras. Abraçam-se. Forçam-se. Amontoam-se. Fogem-me das
mãos. E só param, em tropeço, quando lhes deito um ponto à frente. Aí alinham-se.
E eu faço parágrafo.</span><br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Presas por um baraço ao silêncio
dos lábios, pendem aos vendavais ou calmarias, imunes à coerência. Não dão
poemas. Não são canção. Mas, se se soltam, arrastam-me o mapa da alma para um
discurso sem crivo. Embriagam-se e expõem-me. Desenfreadas, revelam segredos.
Sem filtros, desmascaram-me. As palavras. Só ao parágrafo me respeitam.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Nunca escrevi um poema. Nunca
soube dosear as letras. Não tenho como condutar as frases. Nunca sei quando é o
fim. E de nada quero só metade. Saciar-me-ia, sem este arremesso sombrio de manchas
negras, se lhes soubesse tomar o peso. Não tendo como sabê-lo, exijo espaço. E
tinta. E, como elas, digo tudo, tal comboio prestes a descarrilar. As palavras,
paridas sem forma certa, nunca sabem o seu lugar.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Quis escrever-te. Poesia. Céu e
chão. Ar e asas. Lua. Estrela. Amor-poeta. Eclipse. Mundo. E eu a viver em ti. Mas
nunca soube escrever poemas. Talvez porque o poema já exista. E, sem lhe deitar
um ponto à frente, sejas tu…</span></div>
LiSahttp://www.blogger.com/profile/08970335715551972477noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-3269827647017136891.post-2813341076615740232018-01-04T06:56:00.000+00:002018-01-04T07:03:43.974+00:00mãe<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">No dia em que fiz 18 anos a minha mãe enviou-me uma sms. <i>“As
dores do parto passaram. As do crescimento serão eternas. À minha menina o amor
próprio desta mãe. E os beijinhos que, espero, transmitam uma sempre elevada
auto-estima. Que consigas ler nos meus olhos as palavras de ternura que não
consigo dizer-te.”</i><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">A minha mãe é uma mulher miudinha. Sobra-lhe em atitude tudo
o que lhe escasseia em tamanho. A minha mãe enfrenta o mundo directamente nos
olhos. E se ele não se amaga perante a imensidão da sua verticalidade, ela
ergue-lhe o peito e alça-se nele. A minha mãe é mulher para impor respeito ao
universo.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">A minha mãe rodopia sobre si mesma quando ouve uma música de
que gosta. Às vezes pego-lhe nos braços e dançamos juntas. Às vezes imagino que
o faço. Um dia dei com ela embalada pelo Frank Zappa. Minutos depois pasmava-se
a ouvir um grupo de charolas algarvias. Antes costumava cantarolar pela casa. E
nós, por força da estupidez da idade, reclamávamos da escolha recair sempre no
fado. Hoje falta-lhe a voz mas não a postura.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">A minha mãe é a maior muralha
alguma vez erguida. A vida bem que a defronta mas embate algum abala a solidez
dos seus alicerces. Às vezes noto-lhe as fendas nos olhos pequeninos cor de
amêndoa. Vejo-lhe o peso nos ombros franzinos. Mas a força, ah!, essa é a de
uma carga inteira de cavalaria.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">O colo da minha mãe é revestido de
silêncios. Mas o seu afecto, também ele de poucas falas, transcende a extensão
de mil abraços. Um dia perguntaram-lhe se eu era normal. Ela respondeu à letra.
Mas foi num ataque de riso, repleto de orgulho, que mo contou. Ainda que nunca
o digamos em voz alta orgulhamo-nos da anormalidade uma da outra.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">A minha mãe é a mais sábia de todas
as mulheres. É também a mais bela. Tem sempre resposta para as perguntas que
nunca faço. Em vez de amor chama-me cromo. E quando sorri tudo o que existe sob
o Sol se alinha em sintonia.<o:p></o:p></span><br />
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span>
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">A minha mãe faz hoje anos e eu só disse que a amava uma vez. Que também ela consiga ler nos meus olhos todas as palavras de ternura que não tenho como dizer-lhe.</span></div>
LiSahttp://www.blogger.com/profile/08970335715551972477noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3269827647017136891.post-5536190628391215722018-01-03T01:29:00.000+00:002018-01-03T01:43:45.319+00:00o amor...<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">O amor não enche palavras. Não me dá forma aos vocábulos. Não
cria esboços em linhas. Não cabe na métrica da prosa. Não compõe textos. Não mancha, não
suja, não enegrece estas páginas.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">O amor não escreve poemas. Porque não sangra, o amor não se
entende com a poesia. Fosse ele vadio! Vazio de inquietação, oco de desassossego, livre de tumultos, perde a voz. Silencia-se na virgindade do papel. Emudece. E liberta-me.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Podia hoje deixar todas as frases em branco, fantasma das
mortes vividas. (Se não voltarmos a morrer não temos futuro, já <i>As
Intermitências da Morte</i> sabiamente anunciava.) Hoje voltava-lhes as costas e despedia-me
delas sem culpa. Não fosse o que lhes devo e remetia-as ao abandono. Forçava-as
ao mesmo desalento de onde, tantas vezes, me retiraram.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Outrora antídoto não são hoje mais que uma rotina dolorosa
que forço, acto supremo de respeito mas deserto de conteúdo. Hoje não tenho
corpo para dar às letras. Não lhes acho alimento. Não sei como desenhá-las. Não
lhes sinto a falta. Sem veneno não lhes encontro propósito. Não lhes sei dar
ritmo ou intenção.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Insisto, rendida à teimosia maior de homenagear o hábito.
Agarro-me à memória da escuridão a perder densidade perante o ritual de levar a
caneta ao caderno mas ela foge-me. Não fosse o amor e estaria só, nesta
ausência de alma para dar à escrita.</span><o:p></o:p></div>
LiSahttp://www.blogger.com/profile/08970335715551972477noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-3269827647017136891.post-68106036900139695272017-11-09T23:57:00.001+00:002017-11-10T11:32:19.365+00:00novembro<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Atrai-me a melodia que as letras produzem
quando agarradas umas às outras. O abraço que desenham ao tomar corpo. O peso
da própria palavra se desestruturada. Convicta e segura se completa. Instável
se separada. Como se cada vocábulo entoasse a canção que Pink Floyd compôs. Together
we stand. Divided we fall. Novembro.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Novembro despoleta uma dança
silábica, erótica e sensorial, entre a língua e os lábios. Tango. Sedução,
cedência, aproximação, ruptura. Repetição. Sem pressa ou atropelo, Novembro
beija e repele. Novembro tem fim aberto. Suspiro que envolve e fascina.
Novembro. NO-VEM-BRO.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Novembro tem firmeza e convicção.
É sensual e dominante. Exuberante. Provocador e intenso. Novembro exibe-se. Alicia
e corrompe de tão confiante. Novembro impõe-se. E revela-se altivo em cada uma
das suas dimensões.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Novembro revestiu-se de arrogância
quando o desafiei. E eu perdi. Ingénua, pu-lo em causa e, sedento de
exuberância, ele atacou, silencioso. Atraiçoou-me. E eu perdi. Novembro chamou
por mim e apunhalou-me. Agora castiga-me.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Novembro mutilou-me. Abriu-me
fendas. Trouxe-me perdas. Ofereceu-me o vazio. E o vazio de Novembro pesa mais
que o de todos os outros meses assentes uns sobre os outros. Novembro é um sádico.
Abandona-me para se foragir. Mas volta, cíclico, cínico, trazendo-me as
memórias e as amarguras dos abalos. Novembro...</span><br />
<div class="MsoNormal">
<o:p></o:p></div>
</div>
LiSahttp://www.blogger.com/profile/08970335715551972477noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-3269827647017136891.post-46266676493754956132017-10-24T23:22:00.004+01:002017-10-24T23:22:48.187+01:00(des)igualdade<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">É-me recorrente ter vontade de
esbofetear pessoas. Acontece-me com a frequência certeira com que os dias se
sucedem uns aos outros. A fuga constante a essa tendência intrínseca é a prova
maior do meu auto-controlo. Abomino este impulso natural mas sei-o verdadeiro. Forço
as convicções a terem mais força que os estímulos exteriores. E domino-me. A
muito custo, sabendo-me errante na essência, domino-me.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Em dias como o de hoje, em que se
assinala a igualdade no seio de cada município, esse impulso é gritante. E eu fervo.
Em sofrimento, empenho-me na tentativa de transformar um par de sopapos
acompanhado de um grito aos ouvidos num método pedagógico que seja mais
funcional. Mas o desalento custa-me. Cansa-me.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">“Perdoai-os que eles não sabem o
que fazem” não me serve de máxima. Não perdoo. Impinjo informação a quem não a
procura. Explico, em paciência que dói, a quem não quer saber. Questiono e
simplifico. Exemplifico. Mas a ignorância alheia transtorna-me. Incomoda-me e
corrói-me. E eu não perdoo. Desculpo a falta de conhecimento e ofereço soluções.
Mas não perdoo a indiferença. Não perdoo a ignorância. Porque este mundo também
é meu.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Incomodam-me as caminhadas por
uma causa. (De que serve tanta gente junta se não se chega a ninguém? Foda-se!)
Incomodam-me as frases feitas e os vídeos históricos. (Outra vez a mesma
conversa? Foda-se!) Incomodam-me os colóquios, as conferências e os debates, de
participação livre, onde só vão os que já nutrem interesse pelo tema. (Quão difícil
é perceber que é aos que não querem saber que é necessário chegar? Foda-se!) Incomodam-me
os conceitos lapidados, uma e uma outra, em bases políticas que se renovam sem
nunca atingir o patamar da acção prática. (Quantos nomes diferentes deve ter o
mesmo problema antes de se procurar realmente uma solução? Foda-se!)<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"><br /></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Chega de apelar à reflexão. Já
chega! Já chega de gente que se diz a reflectir. Há décadas que se finge reflectir.
Há décadas que se fazem estudos e relatórios. É preciso agir. É urgente fazer. É
urgente informar. É urgente educar. É urgente o ensino de uma cidadania activa.
É urgente uma aproximação às comunidades e uma intervenção, prática, no contexto
escolar e familiar.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">A mudança começa em nós. Mas quem não tem em si essa chama
precisa de um estímulo exterior que permita a combustão. É que, afinal, não
temos todos o mesmo peso sobre a terra.</span><o:p></o:p></div>
LiSahttp://www.blogger.com/profile/08970335715551972477noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-3269827647017136891.post-44125699967721149642017-09-10T14:47:00.000+01:002017-11-10T00:03:57.504+00:00.<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Procurei por ti em todos os
rostos, julgando ver pedaços teus em cada um. Esperei-te a cada um dos
instantes desta noite inteira. E quis prolongá-la para lá de todas as horas,
sabendo-a a última. Arrastei-a enquanto pude, inventado cigarros que fumar, tempo
que dizer.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Quando os rostos se esgotaram
esperei, imóvel, que me surpreendesses. Não me mexi, não fosse perder-me do teu
encontro. Mas o teu abraço não chegou. E o frio que veio da ausência da tua
vontade entranhou-se-me na pele em teu lugar e enregelou-me a alma. O mundo
doeu-me. E as lágrimas soltaram-se, ainda mornas de tanto querer. Chorei até
que a noite se finasse. E tu nunca chegaste.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Quis “abrir-me contigo, desabafar
contigo, falar-te da minha solidão”. Achei que compreenderias. Mas tu nunca
vieste. E as palavras da canção que sei de cor e que hoje podia ter sido nossa
tiveram como único fado o meu abandono. “O Bairro do Amor é uma zona marginal,
onde cada um tem de tratar das suas nódoas negras sentimentais”.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"><br /></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Podia ter-te amado...</span><o:p></o:p></div>
</div>
LiSahttp://www.blogger.com/profile/08970335715551972477noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3269827647017136891.post-75124771627366072742017-07-22T12:33:00.001+01:002017-11-10T00:05:35.138+00:00embriaga-te!<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Quero o mundo inteiro. Todo o
universo. De um trago só. Em todos os instantes, num único. Em cada partícula
de ar. De todas as partículas de ar que são minhas e tuas e nossas e que, por
nos beijarem sem sabermos, nos deixam unidos. Quero bebê-lo de cada letra de
todas as palavras. E que todas as palavras tenham alma e essência e vida
própria. E que ela me abalroe com a fúria de um tornado. Que me impluda em
emoções e colapsos. Que me arrebate. E me viva por dentro.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Quero tudo ao mesmo tempo. E que
o tempo seja agora. Que seja sempre agora. Como o tormento intrínseco dos
poetas. E que o amor, seja, também ele, inteiro como o mundo, todo como o
universo. Que seja cada célula do mundo inteiro, de todo o universo. E, na singularidade
de um momento, a elevação da soma de um milhão de paixões instantâneas
acumuladas. Que expluda em magnitude. O amor.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Porque tenho pressa, quero tudo
ao mesmo tempo. E que o tempo seja já. Porque se é para ser efémero que seja
intenso. E que tenha o tudo que somos no mínimo que há para fazer. Que seja a
embriaguez e a ressaca. O estímulo e o orgasmo. O carrossel e a montanha-russa.
A rampa e o muro. No mesmo trago. Em todos os instantes, num único.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Que sobrevivamos aos embates. Que
transformemos o refugo em felicidade. Que a tornemos faísca e chama e lume,
enquanto houver combustível. Que nos incendiemos. Que possamos arder. Que nos
deixemos arder. E que haja, de quando a quando, um igual que nos ampare, não
nas quedas mas na vontade volátil e ilusória de podermos, um dia, render-nos.
Que saibamos sempre que existem outros. E que é o seu peso que equilibra o
cosmos.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"><br /></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Aos amores vadios. Aos loucos.
Poetas. Solitários. Românticos. Amantes. “Porque bebemos, sabemos coisas.”</span><o:p></o:p></div>
</div>
LiSahttp://www.blogger.com/profile/08970335715551972477noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3269827647017136891.post-4924138122761814542017-07-07T14:00:00.002+01:002017-07-07T14:01:35.657+01:00no expectations<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="line-height: 115%;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">No expectations, dizes tu. E o fogo, a alastrar em mato seco,
queda-se perante o esmorecimento, expectante. Cede à frigidez da terra, na ausência
repentina de combustível, e dissipa-se.<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="line-height: 115%;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="line-height: 115%;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">No expectations, dizes tu. Como um pedido de desculpas
precoce, atempado, na ânsia de desresponsabilização pelos danos que o incêndio
possa provocar. Conheces a história e decoraste o desfecho,
inflexível à eventualidade de uma reviravolta. Detesto cobardes!<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="line-height: 115%;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="line-height: 115%;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">No expectations, dizes tu. Porque grandes expectativas geram
grandes desapontamentos, justificas, afastando da consciência a culpa, num acto
intrínseco de protecção. Haverá vazio maior que viver sem expectativa?<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="line-height: 115%;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="line-height: 115%;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Cumpro o papel cordial de te dar resposta, já sem género
definido, e aceno. No expectations. Rendo-me. E as explosões enclausuram-se e
perdem fôlego. O fogo extingue-se. E o incêndio é controlado antes de
acontecer. É o fim antes do início ter tido tempo de ser sonhado.<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="line-height: 115%;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="line-height: 115%;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">É a possibilidade de magia desfeita, numa ofensa à
acidentalidade do amor. É o ideal de liberdade a agrilhoar mais que a solidão,
na ilusão utópica de que é possível viver sem correr riscos emocionais. Almas
quietas vivem mais tempo. Mas morrem mais cedo.<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="line-height: 115%;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></span></div>
<span style="line-height: 115%;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Recuso uma existência sem expectativa. E, face à
aparente inevitabilidade da desilusão, entrego-me à probabilidade, ínfima mas concreta,
de rebentarem fogos-de-artifício. Adormecer sem ter com que sonhar é o mais
solitário de todos os actos.</span></span>LiSahttp://www.blogger.com/profile/08970335715551972477noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3269827647017136891.post-79101477434551104422017-06-07T01:16:00.001+01:002017-06-08T11:27:39.062+01:0034<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Passaram sete dias desde os meus 34
anos certos. 33 anos e 17 dias desde que o meu pai endereçou uma carta à tia
que vivia em Lisboa a dar conta do nascimento do meu irmão. Dizia-lhe que o
mundo que me circundava se resumia a duas palavras: cão – que dirigia,
especialmente, ao recém-nascido, aos cães, gatos, galinhas e formigas - e burro
– para designar os próprios mas ainda as cabras, as ovelhas, as vacas e
qualquer objecto de maior dimensão. Papá e mamã eram, nessa altura, extensões
de mim própria.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Contava o meu pai, no seu bater
pulsante de teclas sobre a máquina de escrever que o meu avô materno trouxera
da Alemanha, que a menina já exibia um feitio digno de muitas palmadas. Aos 11
meses apresentava demasiada personalidade para um corpo ainda tão pequeno.
Curiosa. Refilona. E, acima de tudo, teimosa. Herdara, de forma somada, o pior
dos dois progenitores.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Encontrei a carta, dactilografa
há mais de três décadas e recuperada pela minha mãe após a morte da tia do meu
pai, dentro de um livro numa das pilhas junto ao sofá. E escolhi a véspera do
meu aniversário para a ler, antes de me voltar a tornar na irmã 11 meses e 13
dias mais velha.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Imaginei o meu pai debruçado
sobre o tampo de madeira da mesa da sala, à luz ténue do candeeiro, madrugada
adentro agarrado à máquina, a escrever, orgulhoso das façanhas dos filhos. E o ruído
das letras a caírem sobre o papel quebrando o silêncio da casa. Olhei para a
minha mãe e dei-lhe um abraço. E também eu me senti orgulhosa do que sou.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Aprendi com os meus pais a
distinguir os verdadeiros eixos da vida. E no dia tempestuoso em que,
contrariada, ousei pôr-me em causa, questionando os ensinamentos que me
transmitiram, foi através de uma carta, escrita à distância de 33 anos e 17
dias, que o meu pai me recordou dos mesmos. Parece que os progenitores
encontram sempre forma de nos confortar e conduzir.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">A menina que, 33 anos e 17 dias
(mais os sete que entretanto passaram) depois, se curva, madrugada adentro,
sobre o computador herdou muito mais que a soma da curiosidade e da teimosia dos
genes. Herdou a sabedoria para distinguir o importante do acessório. E,
principalmente, a certeza de que se manterá fiel a si mesma. Porque há o
importante. E há o acessório.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Tornei-me 33 anos e 17 dias (mais
os sete que entretanto passaram) mais curiosa, mais refilona, mais teimosa. E
na véspera do meu trigésimo quarto aniversário lembraram-me o quão importante é
orgulhar-me disso.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Tornei-me 33 anos e 17 dias (mais
os sete que entretanto passaram) mais sonhadora, mais inconformada, mais
inadaptada. E orgulho-me disso. Porque a revolta sempre será um acto de
coragem. E a solidão é a mais sábia das companhias.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Enquanto os putos do bairro iam à
catequese para, em casa, chamarem nomes aos avós, eu inventava a tabuada do 17
e do 79 e escrevia histórias à máquina. Da mesma forma que enquanto alguns se
preocupam em tirar selfies com a banda como pano de fundo eu tento escutar a
música. Porque há o importante. E o acessório.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">De um modo geral, nunca senti grande
afeição pelo ser humano. E cedo percebi que não tinha qualquer intuito de integração.
Quando o meu pai me explicou que, contrariamente a todas as regras gramaticais,
Liberdade e Amizade se deveriam sempre escrever com maiúscula percebi a
mensagem.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Gosto de gente estranha. Gosto de
gente esquisita. Gosto de gente desconfortável. Gosto de gente desequilibrada. Gosto
de gente solitária.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Gosto de sonhadores. Gosto de
curiosos. Gosto de lutadores. Gosto de rebeldes. Gosto de loucos.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Gosto de gente imprevisível.
Gosto de gente impulsiva. Gosto de gente com alma.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Gosto de gente simples na forma de estar, complexa na forma de ser. Gosto de
gente autêntica. Gosto de gente que é gente, imperfeita e genuína.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">E não gosto de clichés. Não gosto
de gente-cliché. Não gosto de frases feitas. Não gosto de convenções. Não gosto de
protocolos. Não gosto de palmadinhas nas costas. Não gosto de beijos que não
tocam a cara. Não gosto de gente que goste de muita gente.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Porque gosto do importante. Não
gosto do acessório. E não há maior herança que essa.</span><o:p></o:p></div>
LiSahttp://www.blogger.com/profile/08970335715551972477noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3269827647017136891.post-32473422177732958552016-07-25T13:50:00.000+01:002016-07-25T13:50:11.684+01:00pousio<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Já não esvoaçam pássaros negros. Não
há olhos de veios sangrentos a inundar-me a vista. Não há monstros, de
silenciosa persuasão, a empurrar-me os passos por carreiros sempre errantes.
Não há fantasmas a alimentar-me de água salgada a raiva. A dança da loucura,
esquizofrénica e demente, deixou de me embalar.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Não há mais vocábulos gritantes,
afoitos e desenraizados, a enrolarem-se-me na língua, cuspindo ofensas em
chamas. Não há punhos cerrados sobre a carne ao comando do pensamento desfeito.
Nem ódio com cheiro a memória a soltar-se-me dos poros, a abandonar a pele e a envolver,
de rompante, o ar.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Há o cansaço que pesa ainda nos
ossos a história. Se o passado tentou atropelar o presente foi porque o
consenti. Mas, sem pássaros negros, olhos de veios sangrentos, monstros,
fantasmas e loucura, a consciência retoma, sem pressas, a soberania. E a calma
ganha terreno à dormência. As pedras voltam ao trilho para deixar antever a
estrada. E eu caminho.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Há ainda aquela dor miudinha que
acompanha a saudade. Que sufoca devagarinho para defender um propósito,
fazendo-se notar. Mas que já não é estridente, aguçada, cortante. Já não
esventra, não perfura, não desassossega. Não mata. Só mói.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Guardo ainda as tuas fotografias.
Não são estáticas. Tiveram sempre um movimento que é infinito, perpétuo. Têm
cheiro e temperatura e tonalidade e luz e sombra, daí permanecerem vivas. “Às
vezes as fotografias que tenho de ti duram três passos. Às vezes duram um
acorde. Às vezes duram a suspensão do ar entre uma inspiração e uma expiração.
Às vezes duram o silêncio todo. Às vezes cabes nelas inteiro. Às vezes não. Em
muitas estás em pedaços, esquissos, frestas, que só eu sei a que parte
pertencem.” Lembras-te?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">A escuridão vai desvanecendo, num
arco-íris de tons cinzentos que aclaram. Depois do pousio, os dias retomarão a
cor. Hão-de florescer ao seu próprio ritmo. Como nós.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Aquieta-me saber que nos deixámos
livres. Que nos libertámos para redescobrir quem somos. E que a despedida pôde
ser medida em beijos. As últimas linhas que escrevi sobre ti contrariaram
tendências, não sabendo a lágrimas ou a desgosto. Foi com um “amo-te”, seguido
do teu nome, que pus fim a tantas páginas doridas. Dir-te-ei que te amo muitas
vezes em silêncio. E, sem cobranças, talvez consiga voltar a erguer-me e a
dizer que também gosto de mim.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<o:p></o:p></div>
LiSahttp://www.blogger.com/profile/08970335715551972477noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3269827647017136891.post-11477430636673968172015-12-02T04:38:00.000+00:002015-12-02T04:48:20.816+00:00castigo<br />
<div style="line-height: normal; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">O tempo que te dou, na ilusão de me pertencer, pesa-me mais que a ti. É
mais demorado. Corpulento. Tem espinhas e caroços. Sabe a sal. É ácido e
corrosivo. Mastiga-me, morde-me, espezinha-me.</span></div>
<div style="line-height: normal; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="line-height: normal; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Castigo-me na tentativa vã de te punir. Vítima e carrasco. E a balança da dor – termómetro
efervescente da raiva – pende errante, desnorteada, descalibrada, tendenciosa. Acalco
as minhas próprias cicatrizes. Realçam-se os medos que as levam à fossilização.
Assentam na angústia. E firmam-se, obedientes, perpétuos.</span></div>
<div style="line-height: normal; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="line-height: normal; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Não verto lágrimas. Secaram-se-me por dentro no poço desmanchado do
peito. As fendas reabrem, sem prazo para sarar. E o vazio, lotado de mágoas, é
doloroso. Ocupa volume igual ao motivo da perda. E, por isso, eu perco. Perco
sempre. Perco-me sempre no labirinto turvo do pesar. Vergo-me à agonia e mirro.
Morro. Mas a amargura não se retrai. Sobrevive, desembaraçada, mutante, imune.</span></div>
<div style="line-height: normal; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="line-height: normal; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">E a memória não me engana. Desembacia-se. Esfrega-se na brancura gélida
para me deixar ver. Enfrenta-me, desafiadora. E se lhe levanto a voz ergue-se,
altiva e dominante. Mutila-me. Fere-me a vista. Assalta-me os restos já mortos
do sossego. Incita-me. Condena-me.</span></div>
<div style="line-height: normal; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="line-height: normal; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">E eu anuo.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"></span></div>
LiSahttp://www.blogger.com/profile/08970335715551972477noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3269827647017136891.post-29372917336603640182015-12-01T03:47:00.000+00:002015-12-02T01:43:34.938+00:00implosão<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Não tenho portas nem janelas. Não tenho fendas, sombras, interrupções
ou correntes de ar. Não há vértices ou esquinas. Não sopra o vento nem entra a
luz. Não sobra o espaço. Não sai o eco.</span></div>
<div style="line-height: normal; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="line-height: normal; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Não há música ou silêncio. Só o ruído. O ruído. Repetitivo, insistente,
monocórdico, incessante. O ruído. E o eco. E o fumo. Doentio. Maléfico. Tóxico.
Nocivo. Viciante.</span></div>
<div style="line-height: normal; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="line-height: normal; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Não há sal na erosão da pele. Não há sol. Não há sul. Não há norte. Não
há dor na frigidez da carne. Não há sangue. Não há morte. Não há distância. Não
há extensão. Não há saudade. Não há corrosão.</span></div>
<div style="line-height: normal; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="line-height: normal; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Não roo os ossos que não os alcanço. Não rasgo os nervos ou puxo tendões.
Não esventro entranhas. Não cavo crateras. Não ceifo emoções.</span></div>
<div style="line-height: normal; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="line-height: normal; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">E os músculos que não se movem. Inflexíveis na perda de elasticidade. Teimosos.
Dementes. E o cinzento que escurece. Enegrece, sujo, cansado.</span></div>
<div style="line-height: normal; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="line-height: normal; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Silencio-me.<br /><br />Impludo.</span></div>
<br />LiSahttp://www.blogger.com/profile/08970335715551972477noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3269827647017136891.post-47126913988556118852015-11-05T05:10:00.004+00:002015-11-05T05:16:29.561+00:00carência<br />
<div style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Falta-me a força na ponta da caneta.
Falta-me agilidade nos dedos. Falta-me motivo nas letras. Faltam-me naufrágios.
Turbulência e distúrbios. Falta-me o ruído. O risco. O desconcerto. O desencanto. O
desalento. O desconforto.</span></div>
<div style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Falta-me a falta de Norte. A ausência
de fronteiras. O mar agitado. O desassossego. Faltam-me descolagens sem cinto.
Travagens bruscas. Atracagens atribuladas. Falta-me a estrada e as esquinas.
Sobra-me o ócio.</span></div>
<div style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Faltam-me náuseas e nódoas
negras. Faltam-me dores e lamentos. Faltam-me problemas diferentes para as mesmas soluções. Falta-me a falta que me fazia o que está
longe. Falta-me o ar.</span></div>
<div style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Falta-me vontade quando me sobra tempo.
Sobra-me cansaço quando me falta inquietação. Foge-me o desconsolo. Assenta-me
a letargia. E eu mirro. Afundo-me no assento cavado deste sofá, já moldado à
minha figura. Copio e colo. Copio e colo. Copio e colo.</span></div>
<div style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Assisto à passividade mórbida do
curvar metódico dos ponteiros. Acompanho a lentidão. Encosto-me. Encolho-me. Deixo-me
talhar. Sou filtrada. E o que se separa esvai-se no fumo corrupto de mais um
cigarro. Desaparece.</span></div>
<div style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Falta-me a falta dos outros
algemada à minha própria ausência. Falta-me a fome. Falta-me a sede. Falta-me a
míngua. Falta-me a saudade. Falta-me o medo.</span></div>
<div style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">O mundo cresceu. Não me cabe nos
braços. Falta-me lembrar-me que o quero perseguir. Falto em mim.</span></div>
<b></b><i></i><u></u><sub></sub><sup></sup><strike></strike>LiSahttp://www.blogger.com/profile/08970335715551972477noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-3269827647017136891.post-54620999921279824762015-10-08T04:19:00.000+01:002015-10-08T17:37:46.851+01:00Tóia<br />
<div style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">No quintal da Tóia havia um tanque
de pedra à sombra de uma figueira. Havia uma outra árvore, menos robusta, encostada
à qual construímos, um dia, uma cabana. Lá dentro guardámos um tapete e uma
cafeteira velha e, nessa tarde, foi tudo o que eu, o meu irmão e o Júlio precisámos
para sentir que tínhamos uma vida.</span></div>
<div style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">A casa da Tóia não era feita de
tijolo nem assentava a direito no chão. Vista de fora destoava de todas as
outras. Parecia inclinada. Às vezes caíam bocados da parede da rua. O chão era
vermelho. Vivo e frio. Na casa de entrada havia um sofá, rijo e comprido, uma
poltrona e uma mesa quadrada de madeira. Do lado direito dois degraus altos
davam para o quarto. Seguia-se a cozinha e mais duas casas sem nome, e sem porta, até ao
quintal.</span></div>
<div style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">A casa da Tóia era diferente de
todas as casas que eu conhecia. Não tinha banheira nem frigorífico. Não tinha
electrodomésticos. Não tinha janelas por isso também não tinha luz. Os banhos
eram dados num alguidar azul, com água aquecida no bico do fogão. O açúcar, a
manteiga e o leite eram guardados no parapeito da chaminé. Havia candeeiros a
petróleo e um armário, de portas verdes, com copos pequeninos.</span></div>
<div style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">A Tóia era diferente de todas as
pessoas que eu conhecia. Tinha muitos anos. Muitos anos e muitas rugas. Vestia-se
sempre de preto. Saia, meias-calças, blusa, casaco e lenço na cabeça. Verão ou
Inverno. Saia, meias-calças, blusa, casaco e lenço na cabeça. Nunca lhe vi a
forma do cabelo nem a cor dos braços.</span></div>
<div style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">A Tóia era a pessoa mais velha
que eu conhecia e por isso era especial. Trazia sempre doces dentro das algibeiras.
Rebuçados embrulhados num plástico vermelho às bolinhas ou tabletes de
chocolate. Era baixinha e movia-se de costas curvadas, mas nunca me pareceu que
lhe custasse subir a ladeira do relógio. Nunca andou à escola nem aprendeu a
escrever o nome. Chamava-se Antónia Júlia. Mas para nós foi sempre a Tóia.</span></div>
<div style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">A Tóia ofereceu-me as minhas primeiras
canetas de bico-de-feltro – um pacote de seis da Mollin - e ensinou-me a fazer
uma omelete. Aos fins-de-semana dava-me sempre cinquenta escudos. E não
hesitava em dar mais vinte a cada um dos vizinhos que estivesse a brincar
comigo. Aos dias de semana, quando eu a visitava depois da escola, comprava-me
uma empada ou um salame.</span></div>
<div style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">A primeira vez que me lembro de
cantar foi na sua casa. “A Minha Casinha”. A porta estava aberta e o sol batia
nos ladrilhos. Lembro-me de ver o marido da Tóia sentado no sofá mas é aí que
temo que a memória me atraiçoe. Talvez essa parte seja fruto do
próprio imaginário porque, tanto quanto me contaram, o marido da Tóia morreu na
altura em que eu nasci. Sei que se chamava João e que não era boa pessoa.</span></div>
<div style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">A Tóia dava-me sempre a mão
quando andávamos na rua. Levava-me do lado passeio. No dia em que percebi que
ela era a pessoa mais velha que eu conhecia mudámos de posição. Ela dava-me a
mão mas era eu que ia do lado da estrada. Por uma questão de segurança,
lembro-me de pensar.</span></div>
<div style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Quando mudámos de casa e deixámos
de a ir ver todos os dias a Tóia carregou-se ainda mais de preto. Mais do que
na roupa passou a exibi-lo na alma. A Tóia era minha tia-avó e nunca teve
filhos. Era a pessoa mais velha que eu conhecia e por isso eu tratava-a com o
respeito de um monumento. Pouco depois morreu e os meus pais não me deixaram ir
ao funeral. Lembrar-me-ei sempre dela, de olhar meigo, sorriso doce e chocolates
nas algibeiras. Saia, meias-calças, blusa, casaco e lenço na cabeça.</span></div>
<div style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Hoje fui ao centro de saúde e vi
muitas Tóias. Quis abraçá-las a todas. Quis levá-las a todas pela mão. Elas do
lado do passeio. Eu do lado da estrada. Por uma questão de segurança.
Porque todas as Tóias deste mundo
têm o direito de ser amadas e protegidas. Como a minha foi.</span></div>
<div style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<br /></div>
LiSahttp://www.blogger.com/profile/08970335715551972477noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3269827647017136891.post-47053519241090110532015-09-09T05:42:00.003+01:002015-09-09T05:42:41.968+01:00os outros<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Vejo-os de braços erguidos. Punhos cerrados. Lábios
ardentes. Sedentos. A espumar pelos cantos da boca. A salivar. Erguem os braços
e gritam. Uivam, de tão entorpecidos que andaram. E o ódio é ensurdecedor. E
ecoa. (Agora é que é!) Palavras certas. Certezas. Porque as ouviram de alguém,
que as ouviu de um outro alguém, ditas, em primeira mão, sabe-se lá bem por quem.
Mas eles sabem. E a (sua) verdade é soberana. Absoluta.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
</div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Erguem os braços, gritam e marcham. Passo certo. Confiantes.
Alinhados. Efusivos. Juntos são mais. E mais são maiores. Maiores valem mais. Rebanho
domado. Exército moldado. Matilha feroz. Famintos de razão. Cegos de racionalidade.
Marionetas!</span></div>
<div style="text-align: justify;">
</div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Vejo-os de braços no ar. Agitadores. (Cães
raivosos!) Propagandistas. (Palhaços!) Detentores da experiência. (Ignorantes!)
Conhecedores de causa. (Idiotas!) Erguem os braços e uivam – os profetas.
Patetas!</span></div>
<div style="text-align: justify;">
</div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Envergam a verdade. Sempre a verdade. Respiram
soberania. E falam dos outros. Os outros e os maus. Os outros que são os maus.
E eles - que são bons (e espertos) - sabem-no. Obtusos! Ridículos!</span></div>
<div style="text-align: justify;">
</div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">E o medo. O medo que assusta. O medo que amedronta.
O medo que apavora. Ai, o medo! Ai, que medo! Mas enchem o peito e lá vão, com
medo e tudo, a encabeçar o pelotão dos revoltados. Cobardes!</span></div>
<div style="text-align: justify;">
</div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Os que vão atrás não têm medo. É só receio. É
receio, que é aquela coisa mais portuguesinha, de gente que nem para ter medo a
sério serve. Têm receio e isso é mais que suficiente para se juntarem à causa.
Antes isso do que nada. Antes isso que outra coisa qualquer. Que a época dos
charlies já era e as pessoas agora querem-se é cultas. Cultas e (in)formadas. Trogloditas!</span></div>
<div style="text-align: justify;">
</div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">E é o naufrágio da humanidade partilhado até à
exaustão no corpo morto de uma criança. Mas espera lá… É que, se não tivesse
morrido, teria vindo cá parar. E só no Porto há uma centena de crianças a
dormir na rua. Portanto, ainda bem que morreu. Ainda bem que morreu porque,
passadas 48 horas, a moda já mudou e a gente tem é de se afirmar. E se é para
ser que seja agora. É que o europeu de futebol ainda está longe. E nós somos
Portugal. E primeiro estamos nós. E as eleições estão à porta. E o PNR
mostra-nos toda a verdade. (Nenhum dos adjectivos que conheço reflecte
verdadeiramente aquilo que me apetece chamar-vos. Baldes de merda fica muito
aquém do desejado, acreditem!)</span></div>
<div style="text-align: justify;">
</div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">O meu pai ensinou-me o significado de liberdade. Assumi
que, mesmo não concordando com determinada opinião, lutaria pelo seu direito à
expressão. Hoje quebro essa promessa. E, ao quebrá-la, aproximo-me daquilo que
abomino. Mas dessa aproximação ideológica tenho apenas receio. Medo - medo
daquele que assusta, que amedronta, que apavora - tenho de vós, que hoje me
rodeiam. Que são marionetas. Cães raivosos. Palhaços. Ignorantes. Idiotas.
Patetas. Obtusos. Ridículos. Cobardes. Trogloditas. Baldes de merda. Vocês, sim
- que vivem na porta ao lado, que frequentam o café da esquina, que partilharam
comigo uma carteira na escola, que ouviram a mesma canção -, metem-me medo. E
nojo. E repugnância. E repulsa. Para mim, são vocês os outros. E, por isso, é
de vós que quero distância.<o:p></o:p></span></div>
<div style="text-align: justify;">
</div>
LiSahttp://www.blogger.com/profile/08970335715551972477noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3269827647017136891.post-32977637324635861172015-07-26T23:59:00.001+01:002015-07-27T01:46:07.360+01:00avó<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">A minha avó teve sempre 68 anos.
Estou certa de que terá sido mais nova. Tenho a certeza de que ultrapassou essa
idade. Mas, no meu inconsciente de menina de franja, a minha avó tinha, todos
os dias, 68 anos.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"> </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Chamava-se Isabel. Isabel
Januária, como, às vezes, sublinho para enaltecer a tremenda falta de gosto da
minha família na escolha de segundos nomes para as suas meninas. Maria
Inocência e Emília do Sacramento de um lado. Isabel Januária, Carminda
Francisca, Antónia Júlia, Damiana Rosa do outro. Lisa Bela mesmo ao meio.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"> </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">A minha avó chamava-se Isabel mas
eu chamava-lhe só avó. Para quê dar-lhe um nome se a minha avó era única? A
minha avó criou um filho, também ele único, que teve sempre duas mães. Viu-o
crescer numa planície imensamente curta para a sua grandeza. Ver-se forçada a
mandá-lo para longe deixou-lhe marcas que tempo nenhum foi capaz de sarar.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"> </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">A minha avó morada na rua
principal da vila, mesmo em frente ao nosso bairro, numa casa comprida, de
quartos sufocantes, sem janelas, que desembocava num quintal de muros baixos,
onde havia um cão vadio, mas com licença e caderneta, e um casal de animais.
Viveu sempre de postigo aberto. A nossa vida era também, naquela altura, a vida
que era dos outros.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"> </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Viu nascer os dois netos com um
intervalo de onze meses. Criou-os, na preocupação silenciosa de que o mal pudesse,
um dia, chegar. Chorou a vida inteira nunca os ter visto baptizados. Criou dois
netos mas deu de comer a muitos outros que nunca tiveram avó. Papossecos com
marmelada que ela mesma fazia e canecas de café com leite. Rodilhas folhadas e
garrafas de sumo Garcia em dias de aniversário. Isostar e fatias d’ovo antes
das corridas do 25 de Abril.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"> </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Contrariamente ao meu irmão, passei
a maior parte da vida a achar que alimentar-me era um acto altamente
sobrevalorizado. A minha avó munia-se de todos os truques existentes no
universo para me fazer ingerir fosse o que fosse. E, se por milagre dos deuses,
nalgum momento eu dizia que gostava de bacalhau com pimentos assados ela
arranjava maneira de o pôr na mesa numa questão de minutos. Isso ou sopas da
panela. Ou qualquer tipo de carne, desde que me dissesse que era de um dos
nossos coelhos. Os bolos que fazíamos eram sempre de laranja. E foram sempre os
melhores bolos do mundo.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"> </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Na altura do Carnaval as irmãs
juntavam-se a ela. Preparar a época era um acto que envolvia todas as mulheres
da família. Começava-se por retirar todos os objectos dos móveis da cozinha.
Depois passavam-se vários dias a fazer recheio, a amassar, a moldar e a fritar centenas
de pastéis de grão e borrachos, que haviam de repousar em cima de qualquer
superfície plana da casa e ser, posteriormente, distribuídos por toda a
vizinhança. Lembrar-me-ei sempre da minha avó de bata e lenço na cabeça, braços
enfarinhados, a explicar-me, com um sorriso genuíno, como rechear alguns dos
pastéis com algodão, para oferecer aos vizinhos menos amigos de dar.
Normalmente, calhavam ao Zé da Alice, dono da mercearia, e ao Zé Maria da
Mariana Mota.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"> </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Em Setembro, havia um dia específico
em que madrugávamos. A minha avó pegava em mim, no meu irmão e no meu avô e lá
íamos, a pé, à feira dos queijinhos, assim que o sol nascia. A feira era só
isso – queijinhos. Bancas e bancas de queijinhos. E homens e mulheres de
navalha em punho, a dar-nos de provar. Os sacos que trazíamos haviam de durar
até ao ano seguinte.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"> </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">A minha avó era uma pessoa de
medos. Havia nela um nervosismo intrínseco que nunca compreendi. O meu pai
trabalhava sempre até tarde. E ela ficava, de pé, atrás do postigo, pela madrugada
adentro, incapaz de adormecer até ouvir o carro cruzar a rua. Chorou de preocupação durante duas
semanas quando os meus pais me deixaram, aos 13 anos, ir a uma viagem a
Londres. Parte dela morreu quando nos mudámos para Beja para ficarmos mais
perto da escola para onde haveríamos de ir.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"> </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Era uma mulher de fé e quando lhe
perguntei quem era esse tal de deus disse-me que era um homem grande, que estava
em todo o lado. Ainda hoje, a única imagem que tenho de Jesus é a de um
gigante, magro e com barba, com uma perna enorme à entrada da vila e a outra junto
ao largo da cascata da Vidigueira.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"> </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">A minha avó dizia que eu e o meu
irmão lhe fazíamos a cabeça em água. Todos os dias discutíamos um com o outro. Depois
uníamo-nos para discutir com ela. Ou com outra pessoa qualquer. Certa tarde de
inverno decidimos que já não queríamos ser amigos do nosso vizinho do lado.
Pegámos em todos os marcadores que tínhamos e riscámos-lhe as paredes da rua.
Guardo, com uma ponta de remorsos, a imagem da minha avó, com um lata de cal na
mão, a pintar a casa do João Paulo, à chuva, antes que a mãe dele chegasse e denunciasse a nossa decisão aos meus pais.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"> </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Com ela aprendi o significado do amor. Nunca a vi dar um beijo ou um abraço
ao meu avô, nunca os vi de mãos dadas nem a dormir na mesma cama. Ele ressonava
e ela não estava para isso. Mas ouvia-a dizer-lhe: tomara que tu vás primeiro
que eu, homem, que sem mim não te governas! E foi através desse romantismo
rude, característico das gentes do campo, que percebi que, de facto, eles se
amavam.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"> </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">A minha avó dizia que o 28 era o
seu número. Nasceu em 1928, a 28 de um mês que já não recordo, casou aos 28
anos e veio a falecer a 28 de Setembro de 1999, deixando o homem sem saber como
se governar. Recuso-me a fazer contas para saber que idade tinha ao certo. A
minha avó há-de ter sempre 68 anos. E eu hei-de ter sempre saudades suas.</span></div>
LiSahttp://www.blogger.com/profile/08970335715551972477noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3269827647017136891.post-186962853159901012015-05-14T15:12:00.006+01:002015-05-14T15:12:59.750+01:00mãe-mártir<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Ser portuguesa é o mesmo que ser
mãe de um toxicodependente. Ser portuguesa é ter um filho enfermo, pútrido, decadente.
Um filho que se estende a milhares de rostos, todos eles máquinas de ruína e
destruição. Ser portuguesa é ser mãe-mártir. É ter deveres, encargos,
obrigações. E poucos, nenhuns, direitos – que direitos poderá uma mãe reivindicar
na relação com o seu filho?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"></span> </div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Afinal, ser portuguesa é ter não
um, mas 563.500 filhos, todos eles enfermos, pútridos, decadentes, ruinosos,
destruidores. Ser portuguesa é ter uma casa cheia de gente parida, alimentada,
educada, amparada. Gente ingrata, mal-agradecida, exigente. É, ainda assim,
continuar a sustentá-la. É continuar a contribuir, em prol da moral ou do
afecto, para o propagar de uma nódoa que se estende e contagia.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"></span> </div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Ser portuguesa é fazer um
investimento a fundo perdido. É nascer já com dívidas. É ter um bando de
rebeldes sem causa, vazios de ideais, acéfalos, parasitas, a sugar-lhe a mama e
os ossos. Ser portuguesa é ter como único fim morrer raquítica, enfezada,
mirrada.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"></span> </div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Ser portuguesa fez-me mãe de 563.500
filhos (da puta, suponho eu). Tenho 563.500 filhos, funcionários públicos, que
me deveriam prestar contas e servir, mas que me roubam e ultrajam. Tenho 563.500
filhos que me ameaçam, me maltratam, me burlam. Tenho 563.500 filhos
incompetentes, incapazes, imbecis. Tenho 563.500 filhos que só me dão
desgostos. Tenho 553.500 filhos e todos eles me envergonham.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"></span> </div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Os que me deveriam dar alguma
segurança social usurpam-me o chão. Os que me deveriam ajudar a ter equilíbrio
financeiro esvaziam-me os bolsos. Os que me deveriam tratar da saúde
arrancam-me o pêlo. Os que me deveriam fazer justiça ignoram-me. Os que me deveriam
proteger intimidam-me. E sempre que peço justificações, todos me dizem: não fui
eu! Como se fosse apenas mais uma tablete a desaparecer da gaveta da cozinha.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"></span> </div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Ser portuguesa é ter 563.500
filhos toxicodependentes e ser vítima constante de violência doméstica. Ser portuguesa
deveria dar direito a viver em casas-abrigo. Ser portuguesa é, todos os dias,
desejar ser estéril.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"></span> </div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">(Ser portuguesa é ainda ter, pela
primeira vez, um texto repleto de erros e não saber sequer como o corrigir).<o:p></o:p></span></div>
LiSahttp://www.blogger.com/profile/08970335715551972477noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3269827647017136891.post-84161839242453980372015-01-09T06:42:00.000+00:002015-01-09T06:46:02.164+00:00non, je ne suis pas Charlie<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"><span lang="FR" style="mso-ansi-language: FR;">Non, je ne suis
pas Charlie. Je ne suis pas Charb. Je ne suis pas Cabu. Je ne suis pas
Wolinski. Je ne suis pas Tignous. </span>Je ne suis pas Oncle Bernard. Não sou,
definitivamente, o Charlie. Nem eu nem uns certos 90% dos que, nas últimas 24
horas, se despojaram de identidade para envergar a imagem do jornal satírico
francês, vítima de atentado. Je suis Charlie?! Deixem-me rir! Essa história não
é minha. Vous êtes Charlie?! Deixem-me rir! Essa história não é vossa.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"> </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Desenganem-se, meus caros! Nenhum de nós é o Charlie Hebdo. Porque
ser o Charlie não é elevar uma imagem numa capa que tem a dimensão efémera de
uma volta da Terra sobre si própria. Ser o Charlie não é uma explosão passageira
de revolta e indignação, iluminada sob os holofotes, sedentos e esfomeados, da
opinião pública, que amanhã se orientam para outro alvo. “Pois é, pois é, há
quem viva escondido a vida inteira”. Esses somos nós. E definitivamente, não
somos o Charlie.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"> </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Je suis Charlie. Mas depois visto a farda, aperto as
algemas, amordaço-me (ainda assim não diga o que penso) e encolho-me, num clima
de medo e opressão de onde nunca sairei totalmente viva, para arrecadar, lá
para os últimos dias do mês, um ordenado menos que mínimo, que me despeje de
dignidade. Eu sou o Charlie? Deixem-me rir!</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"> </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Vous êtes Charlie. Mas depois balizam a informação consoante
as linhas do poder político e económico, ainda assim não chateie uns ou aborreça
outros. Mas não é por medo que se cortam linhas de texto ao toque do telefone. Não…
Não é por medo que se trocam manchetes, desaparecem entrevistas, se arredondam
factos. Não… A isso chama-se responsabilidade, consciência, sobrevivência.
Interesse! Vocês são o Charlie? Deixem-me rir! “Você nunca lamberam uma
lágrima.”</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"> </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Seria o mundo o fosso de desumanidade como o conhecemos se
todos os que hoje envergaram a marca Charlie Hebdo o fossem de facto? Seria o mundo
um antro mais de ratos que de homens se todos os que hoje se cobriram com a
imagem do Charlie Hebdo se exprimissem tão livremente como ele?</span><br />
<br />
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Querem ser o Charlie? Então, revoltem-se. Ergam-se. Ajam. Mas
façam-no com inteligência, com sabedoria, com empenho. E talvez, se começarem ainda
hoje, em 45 anos possam envergar a tal imagem, sem que a mesma pareça ridícula
e ofensiva. Até lá, tenham vergonha!</span></div>
LiSahttp://www.blogger.com/profile/08970335715551972477noreply@blogger.com0