08 março 2021

coisas de moços!


Comecei a cumprimentar a Dona Joaquina por lhe achar graça ao ar. E ela começou a retribuir. A Dona Joaquina tem para lá de 80 anos e é costume vê-la com vagar na esplanada da praça, sozinha e sorridente. Gosto de gente solitária e confortável com a própria solidão.

Amiúde pergunta se pode ganhar ar da volta e sentar-se comigo. Conta-me histórias da miséria e do custoso que foi criar as filhas. Coube-lhe a ela. Como cabia sempre, naquele tempo, às mulheres.

Labutou muito. Em casa e fora dela. Penou outro tanto. Nem a fruta que caía, a apodrecer, das árvores a patroa lhe permitia acariar. Do que rendia o trabalho dava parte à Casa do Povo. Mas parte de pouco será sempre muito pouco para dar alguma coisa. Hoje pede aos moços novos que passam na rua para lhe carregarem os sacos e lá abala, calçada abaixo, rente ao passeio, a dar uso à companhia.

A minha avó Joana nunca quis que a minha mãe lavasse no tanque ou desse baixinhos de cal nas paredes. Como ela o havia feito. Como faziam as moças da aldeia. A vida era para lhe correr de melhor feição. O meu avô Zé impôs à minha tia que se livrasse de, de homem algum, apanhar as primeiras. É que as primeiras jamais seriam órfãs. Lá em casa não se falava de feminismo. Dava-se-lhe, sem saber, o nome de amor.

O apartamento que comprei trazia na fechadura das portas restos do papel onde vinham embrulhadas as chaves. Lembrei-me de todas as casas-de-banho públicas em que entrei. Como homem, o meu companheiro tardou em perceber a analogia. Como mulher, cedo aprendi a contornar os avanços dos espectadores indesejados.

Aos seis anos descobri que, durante todo o Ensino Primário, não havia de utilizar uma única vez as casas-de-banho da escola. As portas não trancavam e eu não gostava de ter olhos alheios postos em mim. Coisas de moços!

Nos intervalos, as meninas escapavam dos meninos que lhes queriam levantar as saias ou dar beijinhos na boca. Eles riam. Elas fugiam e gritavam. Coisas de moços! Serenava-me não atrair a atenção do sexo oposto. Mas aterrorizava-me a ideia de que pudesse, dia algum, vir a ser remetida para o lugar de presa. Sem margem para posições neutras, antes predadora.

Ouvi o primeiro piropo quando ainda conseguia contar, pelos dedos das mãos, as voltas da Terra sobre o Sol. Boquinha doce. Larguei a bicicleta e fugi nauseada pelo quintal da minha avó adentro para não voltar a ver a travessa naquela tarde de Verão. Coisas de moços!

Trazia, na testa, o reflexo da puberdade e, no bolso, um walkman de pilhas gastas naquele sábado em que saí do dentista. Um par de mãos a agarrar-me, na rua, o par de mamas que mal tinha. E, por trás, o mesmo riso. Aquele riso dos meninos que perseguem as meninas nos intervalos. A mesma satisfação. Perversa. Sádica. Cruel. O jogo do predador e da presa. Coisas de moços!

O meu grito, a mesma agonia. O desconforto. O incómodo. E o nojo. A raiva. A revolta. E a vergonha. Depois, o desalento. Por fim, a quase habituação à normalização social do assédio e da violência. Coisas de moços?

Nas vésperas de mais um Dia Internacional da Mulher recebi a notificação de que a queixa que apresentei contra um médico do Serviço de Urgências, que me agarrou violentamente por um braço e me arrastou, havia sido arquivada.

De acordo com o Ministério Público, violência que é violência tem de deixar sequelas. Físicas. E visíveis, em exame pericial realizado volvidas mais de 48 horas. Como se, efectivamente, a alma não sentisse o que os olhos são, mais tarde, incapazes de ver.

A narrativa remete-me irremediavelmente para o tão enraizado Estava mesmo a pedi-las!, para o tão afamado Pôs-se a jeito!, para o tão vulgar Ela fez alguma! E lá ecoa o desculpabilizante Quem lhe manda começar a gritar com o homem?! Homem algum deve ser publicamente enxovalhado.

Histérica! Desequilibrada! Frustrada! Ela. Feminino.

Questiono-me se uma médica teria tido, para comigo, a mesma postura. Deixo a dúvida pairar. Mas tenho por certo um desfecho diferente caso a minha voz ressoasse de um corpo de homem. Às palavras não seria associado histerismo mas agressividade. Ao desequilíbrio chamariam insatisfação. À frustração ameaça.

A segurança seria accionada. E eu sairia sem que braço algum me agarrasse violentamente e arrastasse. Mas, neste jogo de poder, a estridência da minha voz não foi intimidante o suficiente para requerer reforços ou exigir o cumprimento do protocolo. Com esta posso eu bem!

Até quando serão coisas de moços?

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