30 novembro 2010

prazer

Não gosto de visitas. Não gosto que me batam à porta. Não gosto que me toquem à campainha. Não gosto que olhem para a minha janela. Não gosto que deixem cair coisas para a minha varanda. Não gosto dos meus vizinhos. Não gosto de gente a deambular pelo refúgio a que chamo casa. Evito-o. Afugento incessantemente essa possibilidade.
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Gosto de percorrer descalça o meu caminho. Gosto de deixar livres os pés no soalho dos meus corredores. Gosto de saltar na passagem de uma assoalhada para a outra. Gosto de correr entre o quarto e a cozinha. Gosto de tiritar de frio e de me enroscar numa manta no chão. Gosto de velas sem cheiro. Gosto de ver a trovoada e de sentir a chuva a trilhar o seu rumo por entre estas muralhas.
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Não gosto do ruído das motas na rua. Não gosto do branco sujo das paredes. Não gosto dos móveis escuros herdados pelo aluguer. Não gosto de um dos míseros quatro canais da minha televisão.
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Gosto da manteiga fora do frigorífico. Gosto de gelado de limão. Gosto de torradas. Gosto de vinho tinto e de cerveja. Gosto de coca-cola light de uma marca branca. Gosto de beber por copos altos. De comer na sala. Gosto de ter livros por todos os cantos. E de guardar as contas longe da vista.
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Não gosto de dormir de pijama. Não gosto de andar vestida. Não gosto de tapetes ou da luz frívola dos candeeiros.
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Gosto do caos que preenche a mesa de centro da sala. Gosto do acumular do computador, dos óculos, dos papéis, dos vernizes, dos cd's, do creme das mãos, dos fósforos e do tabaco de enrolar no tampo já gasto. Gosto de lhe pôr os pés em cima quando me recosto no sofá. Gosto de almofadas sempre à mão. Gosto de adormecer durante o dia. Gosto de me lembrar dos sonhos doces. Gosto dos cortinados transparentes e da janela aberta. Gosto da luz do sol a entrar de rompante ou da escuridão aconchegante das madrugadas de insónia.
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No fundo, só não gosto de gente por perto. Não gosto de pessoas no meu encalço. Talvez por temer habituar-me ao conforto da sua presença. Talvez por saber que, a seu tempo, todas partem. E eu fico. Apenas eu e esta intrínseca sensação de abandono.

22 novembro 2010

esquisso

Ofusco verdades que não controlo, não assumo nem admito. Oculto tensões. Disfarço desconfortos. Finjo um esforço ambíguo. Dissimulo pesares. Forço um querer, desprovido de espontaneidade. Camuflo o desgaste. E mascaro-me.
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Desvirtuo emoções. Deturpo sentimentos. Adultero felicidades. Afasto-me do essencial para me perder num subúrbio demente do viver.
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Mas é no conforto solitário sustentado por estas paredes que vejo os pés a arrastar-se. Farrapos já sangrentos que desgastam a frieza do chão e corrompem a carcaça que me veste.
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Esquissos. Encolho-me. Cubro-me, aterrada na possibilidade de nada mais ser que isto. E aqui fico, a lamber a própria carne, na cobardia de rejeitar o erro, o fracasso e a derrota.

21 novembro 2010

enigma

Quero o silêncio, escoado de um sopro para uma esfera selada. Quero caladas as vozes, os sussurros, os murmúrios. Quero distantes interrogações e exclamações. Inquirições. Sugestões e formulações. Suposições e objecções. Quero o vento afónico e a chuva muda. O silêncio.
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Quero estáticos os sinais. Imóvel o pensar. Inertes as palavras. Quero esventrar-me por dentro no vácuo. Sem estilhaços ou remendos. Sem salpicos ou fragmentos soltos. Quero o mundo encerrado entre os muros de uma cápsula. Um ambiente controlado que domine - ditadora de vazios sem dono.
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E o silêncio. Ainda o silêncio.

08 novembro 2010

senilidade

Ato o cabelo com um gancho e afasto os fios desgrenhados, sem preceito. Deixo livre o rosto. Deposito toda a minha atenção frente ao espelho, na luz débil de uma casa vazia. Amacio a pele que há muito perdeu a pureza. Percebo que me nasceram novas rugas. Marcas de expressões repetidas na melancolia das horas. Tenho o olhar menos bravio, menos desafiador. Mais baço, mais resignado. Seco de tanto chorar.
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Envelheci, mais depressa que o tempo, nos últimos dias.
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Tenho chagas no corpo e maleitas na alma. Não saro nenhuma delas. Tenho os dedos enrugados e as unhas nuas de vaidade. Trago nódoas na roupa e declino a vontade de as limpar. Deixo fechado o armário. Acomodo-me à ausência de estímulos e habituo-me a ignorar calendários. Não há datas a celebrar.
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Palmilho a mesma calçada num e noutro sentido em regulares intervalos de tempo. Deixei de os contar. Deixei de diferenciar o ponto de partida do de chegada. Abandonei a confiança e oprimi a ousadia. Desisti de esperar para prosseguir esta caminhada infértil e sem destino.
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E é na esterilidade que me cerra os dias que sei que envelheço. Mais depressa que o tempo.