06 fevereiro 2013

fera

Tenho uma criatura demente a morder-me, esfomeada, pedaços do cérebro. A arrastar-me as ânsias para a escuridão do abismo. A relançar-me, sem escudos ou protecção, contra um muro de betão onde se espelham todos os meus medos. Depois puxa-me os pés e obriga-me, dominadora, a lamber o chão. Faz de mim farrapo, bicho assustado, espantalho. Corta-me as asas, ameaça-me, amordaça-me, enforca-me.

Tenho um cancro indomável a corroer-me o corpo, a carcomer-me a mente, a desfazer-me de mim. E eu cedo, sem dar luta, sem forças a que me agarrar, sem certezas de poder algum dia vencê-lo.

Tenho-me a mim presa por um cordel. Trago-me comigo, por pisos movediços e terrenos instáveis. Sufoco-me dentro do que sou, mudo de forma, camaleão inconstante e incoerente. Encolho, mirro, perco substância, emagreço por dentro, desapareço, sem saber que parte de mim sou afinal.

Basta um click. Silencioso, aparentemente inofensivo, imaginário. Mas corrosivo, demolidor. Que se torna intransponível, impenetrável, inultrapassável. Que me cerca e enclausura.

Não gosto de mim quando não me encontro. Não gosto de mim quando desapareço por entre os enigmas que me preenchem por dentro os espaços vagos. Quando me atraiçoo em descuidos inconscientes e irracionais. Quando sucumbo por dentro às tempestades que me assaltam o peito.

Tenho medo. Assusto-me. E minguo. Sou fragmento frouxo, frágil, sensível, em decomposição. Sou esquisso inacabado, esboço constantemente incompleto. Faltam-me peças, porções, medidas certas. Tenho bocados soltos a chocalhar nos buracos da alma. Mapa rasgado, permeável, poroso.

Em mim não confio. Sou volátil, solúvel. Tenho desconforto e desconsolo, vergonha e desalento a correr-me nas veias, a sugar-me o que resta, a enregelar-me com ácido as entranhas. Tenho sangue expulso da carne a jorrar-me pelos olhos em forma de pesadelo. Fraqueza nos ossos a curvar-me as preces.

Sou fantasma pretensioso e arrogante, a fazer-se de gente. Vulto vazio de conteúdo e essência. Mancha disforme e confusa. Pedra. Estorvo. Empecilho. Vislumbre, indício, reflexo de coisa nenhuma.

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